As novas errâncias de Adriana Calcanhotto
Em novo álbum, “Errante", a cantora dialoga com descobertas sobre a própria identidade e fala sobre seu gosto pelo desconhecido
Adriana Calcanhotto já escreveu sobre tudo – ou quase tudo. Já falou sobre a perda, sobre a falta, sobre os prazeres e até sobre a arte, e já fez muitas gerações chorarem. Em Errante, seu 13º álbum lançado numa carreira de mais de três décadas, ela canta sobre uma descoberta que tem a ver com as suas origens. Como bem sabem, Adriana sempre gostou de andar pelo mundo observando e divertindo gente, mas soube que esse bel prazer está no sangue, pois Adriana é sefaradi, ou seja, descendente de judeus da península ibérica. Parecia que seu destino era, de fato, errar, ou melhor, caminhar sem saber para onde ir e o que vai encontrar pelo caminho.
O álbum, além de cavoucar essa identidade perdida, remenda as dores da pandemia, momento em que lançou o disco Só, com crônicas de seus dias de confinamento. Nesse último lançamento, decidiu que a alegria, o ritmo do samba, daria o tom inicial. Assim que pôde, abandonou o isolamento e se reuniu com os seus músicos, parceiros de estrada. Foram para Araras, na serra fluminense, se isolaram juntos, numa breve temporada criativa. Lá, permaneceram nove dias, criando juntos. Foi assim que Errante nasceu, reunindo composições novas e antigas, mas todas ligadas pelo desvelo de encontrar a si mesma.
Seu ano tem sido especial. Além do álbum, Adriana anunciou recentemente sua turnê Gal: Coisas Sagradas Permanecem, em homenagem à cantora Gal Costa, que percorrerá algumas cidades brasileiras. No palco, Adriana visitará o repertório de Gal e cantará com seus músicos.
Adriana, parabéns pelo novo álbum. Uma das primeiras impressões, quando olhamos para a capa de Errante, é essa colagem de passaporte, de rastros de identidade. Como que nasceu esse projeto?
Eu tinha um material de compositora inédito, uma quantidade de material que nunca tive antes, com canções que compus entre 2016 e 2021. Eu fiz um álbum durante a pandemia, sobre a pandemia, devido à pandemia, confinada na minha casa e gravei sozinha em casa, enquanto todos os colaboradores do disco gravaram em suas casas. Em novembro de 2021, a gente foi para o estúdio na Serra aqui do Rio, ficamos lá hospedados gravando. Então tudo isso é o oposto ao disco da pandemia, onde não teve encontro, não teve nada presencial.
Nesse, nós gravamos juntos, morando juntos por nove dias, então todo o processo é diferente. E as canções do disco da pandemia foram escritas como crônicas da pandemia. Cada dia eu acordava e fazia uma canção. O material inédito de Errante são canções que vão de 2016 ou 2021, cada uma do seu jeito, uma feita na estrada, outra feita em casa. Eu gravei tudo o que eu tinha e aí é que fui entender o recorte do disco, o que ele era. Algumas canções caíram e com as que ficaram, fui entendendo o recorte dele.
E o que você entendeu que era esse disco?
Entendi que ele trata de questões de identidade, de escolhas e não escolhas. As coisas que eu escolho, como errar pelo mundo cantando canções, a coisa da itinerância e da errância, que são uma escolha, convergem com essa descoberta que fiz no ano passado de que tenho no sangue a itinerância, por ter antepassados judeus que fugiram da inquisição e vieram para o Brasil. Entre uma das principais escolhas da minha vida tem uma não escolha, algo anterior à escolha que sou eu mesma, a errância.
Você não parece ser uma artista que simplesmente lança um álbum por lançar, mas que sempre traz com eles uma camada muito ligada à sua história. E um aspecto interessante de seus álbuns é a variação no tempo que levam para ser criados e lançados. O caso da Trilogia do Mar (que levou 20 anos para ser concluída) é bastante emblemático nesse sentido. Em que momento que você percebeu ser a hora de lançar Errante?
Eu nunca tive essa experiência de tempo de gravar um disco. Foi no final de um ano, novembro e dezembro, aí eu mixo no outro ano, mas daí eu lanço apenas no outro ano. Eu sempre acho que as camadas de tempo imprimem na sonoridade. Mesmo já estando gravado, quando fui mixar eu já estava em outro momento e mesmo assim quando eu gravei eu não tinha ideia do que o disco seria, do que ele era e lançou assim “material de compositora inédito”. Depois é que fui entendendo sobre o que o disco estava falando e isso também é novo e acho que esse intervalo de tempo entre a gravação e o lançamento é que me deu oportunidade de entendê-lo melhor.
“Entendi que ele [o álbum] trata de questões de identidade, de escolhas e não escolhas. As coisas que eu escolho, como errar pelo mundo cantando canções, a coisa da itinerância e da errância, que são uma escolha, convergem com essa descoberta que fiz no ano passado de que tenho no sangue a itinerância, por ter antepassados judeus que fugiram da inquisição e vieram para o Brasil”
Adriana Calcanhoto
Você comentou sobre esses nove dias de criação coletiva. Como foi esse período?
Antes de nos isolarmos, estávamos todos isolados antes. Fomos para serra e nos isolamos juntos. Estávamos com muita vontade de tocar e de estarmos juntos. Não fomos combinando ou conversando como que seria. A gente só ficava tocando. Foi ótimo.
A gente fazia duas faixas por dia. Duas faixas inteiras. A gente tinha muita vontade de tocar porque ficamos parados durante muito tempo, com muita saudade de nós mesmos. Além dessa super concentração, de acordar, tomar café, dar três passos, entrar no estúdio e começar a trabalhar. Não foi planejado ficarmos nove dias.
Nove dias no tempo da criação parece muito pouco, mas no mundo real, é muita coisa.
Sim. Nove dias para fazer um disco é muito apertado, mas foi tão fluído que quando a gente se deu conta a gente fez 18 faixas em nove dias. É uma loucura, mas aconteceu porque existia muito prazer de tocar. Não precisava ficar inventando mais coisas, não precisa lotar a faixa de coisa, foi muito fluído.
Pode ser um engano, mas me parece que Errante é um dos seus álbuns mais contaminados pela energia do samba. Como essa influência esteve presente?
Tudo vem do samba nessas composições. Eu mostrava uma canção como samba, ia para o meu cantinho, cantava e tocava como samba. Mas eles [os músicos] não tocavam como samba, tocavam como outra coisa. O disco tem muitos ritmos. E isso sem combinar nada. Cada um ia para o seu lugar e quando tava na hora de escutar, entendia o que cada um tinha feito. Era muito surpreendente e muito natural. Era fluído, e eram outros ritmos que se encaixavam na batida do samba.
Nesses últimos anos você tem estreitado sua relação com a Academia. Como essa experiência enquanto professora tem interferido na sua criação musical? Você acredita que o seu processo pessoal mudou?
Mudou, certamente. Tem uma coisa que noto, eu passei a compor mais depois que comecei a dar aulas de composição musical em Coimbra. Eu passei a ter uma consciência maior do processo enquanto estou compondo que confesso que antes tinha certo medo. Pensava que se eu ficasse especulando sobre certas coisas que as pessoas perguntam sobre o ato criativo, eu poderia estragar tudo. Mas não. E a experiência de ensinar, o que entendi, é também aprender. Então fiquei apaixonada.
E tudo naquele esquema Coimbra, com professores inacreditáveis com uma paixão pela transmissão do conhecimento. A gente faz qualquer pergunta e a resposta vem num nível altíssimo de conhecimento, com brilho no olho, que é a tal paixão. Mudou minha vida. E mudando minha vida, mudou minha composição.
Você já disse anteriormente que não é adepta de fórmulas na composição musical. O que, para você, normalmente funciona?
Cada canção vai pedir o que necessita. Acho que tem que estar aberta para essa observação porque se você tem muitos métodos, você acaba se perdendo. A coisa da fórmula é que se você jogar na internet ‘fórmula do hit’ tem milhões de fórmulas. Aí você monta tudo isso e faz a sua canção e veja se é um hit. É uma furada esse lance porque a fórmula é baseada em coisas que já aconteceram, mas nunca ninguém sabe [o resultado]. Eu faço aqui na minha casa, no meu quarto, sozinha, uma canção no violão. Não dá para saber se aquilo vai bater nas pessoas, se aquilo vai bater no coração das pessoas ou não vai. E essa é a grande graça.
O que a errância significa para você?
Errante é uma palavra latina que tem mais de um significado. E, de certa forma, eu gosto muito do risco, eu não gosto de não correr riscos. Errar é um pouco andar sem querer chegar, andar por andar. Importa o caminho, não a chegada. Não é o objetivo chegar lá, a graça estar em andar.
Curioso que o álbum anterior, Só, tratava de um momento em que estávamos todos impossibilitados de nos movimentar e nos encontrar. Há algum diálogo entre esses dois álbuns?
Errante responde às questões do Só. Eu me dei conta de que ficar isolada involuntariamente não era tão legal. Tanto que o som fala disso, tem uma canção que intitula “Com saudades da estrada”. Eu me lembro de estar em casa com saudades do perrengue, não lembrando só da parte boa. Por que eu estou de bobeira nesse sofá, se eu podia estar comendo uma comida horrorosa de avião, perdendo uma conexão, pegando uma fila horrorosa?
E você gosta muito da estrada, do palco, não é? Gostaria de pegar esse gancho para perguntar sobre a turnê em homenagem à Gal Costa. O que você planeja para esses shows?
Os shows da Gal foram um presente que ganhei. Mudei toda minha agenda para poder fazer. Estou mexendo com o repertório, que é algo inacreditável. Ela fez gravações definitivas de uma série de canções que são obras-primas da canção brasileira. Minha tentativa no roteiro é fazer canções emblemáticas da trajetória dela, mas também canções que ela gravou que impactaram a minha vida, portanto, mais tarde, o meu trabalho, tanto de intérprete quanto de autora. Eu aprendi com ela a cantar coisas muito populares. Mas não é fácil botar uma trajetória desse tamanho em uma hora e meia de show.
É uma tarefa muito amorosa. Sempre admirei o trabalho da Gal, mas gostava muito dela pessoalmente, a forma dela estar no mundo com aquele jeito pacífico. Muito ousada, mas muito doce.
Tem uma canção que tá nos dois shows, tanto no errante, quanto no da Gal, que é Esquadros. Quando escrevi Esquadros eu ainda não tinha andado tanto pelo mundo, mas era uma coisa que eu queria, que eu sabia. E ela fez uma linda gravação de “Esquadros”.
“A coisa da fórmula é que se você jogar na internet ‘fórmula do hit’ tem milhões de fórmulas. Aí você monta tudo isso e faz a sua canção e veja se é um hit. É uma furada esse lance porque a fórmula é baseada em coisas que já aconteceram, mas nunca ninguém sabe [o resultado]. Eu faço aqui na minha casa, no meu quarto, sozinha, uma canção no violão. Não dá para saber se aquilo vai bater nas pessoas, se aquilo vai bater no coração das pessoas ou não vai”
Adriana Calcanhoto
O que você aprendeu com a Gal?
Acho que a ligação com repertório. E uma coisa bem importante, agora estou assistindo vários entrevistas, e havia uma relação muito forte com os músicos. É de uma amizade, um amor, uma relação no sentido do afeto que extrai deles uma coisa importante para o trabalho, mas que precisa ser legítima, que precisa acontecer de verdade. E ela falava muito disso, e eu acredito muito nisso também.
Errante – 2023