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Bebel canta João Gilberto

No álbum João, Bebel Gilberto resgata canções do repertório do pai, João Gilberto, tratando como uma póstuma declaração de amor

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 4 mar 2024, 12h10 - Publicado em 28 ago 2023, 11h32

Pela primeira vez em toda sua carreira, Bebel Gilberto arriscou imergir no antigo repertório musical de seu pai João Gilberto, um dos mestres da bossa nova. Em meio à saudade, ela se sente menos ansiosa e mais livre para poder interpretar canções icônicas no imaginário brasileiro à sua própria maneira, sem o receio das críticas do pai. O resultado está no álbum João, o mais pessoal de sua trajetória. “Havia muita afinidade entre nós. Eu e meu pai compartilhamos uma sintonia muito profunda. Criei esse álbum com muita cautela e foco. Acho que o que ele mais admiraria nessa homenagem seria a minuciosidade e o compromisso, iguais ao dele na musicalidade. No cantar, fui mais solta”, explica a artista em entrevista à Bravo! por videoconferência, em Nova York. 

O projeto, que também se desdobra em uma turnê por doze países, começou ainda durante a pandemia. Bebel já estava vivendo no Rio de Janeiro, para onde se mudou de vez no mesmo ano da morte de João Gilberto, em 2019. No ano anterior, ela também havia perdido a mãe, a cantora Miúcha (Heloísa Maria Buarque de Hollanda). Foi até Nova York para receber a vacina, num período marcado por incertezas – e imbróglios – no Brasil. Aproveitou o momento para selecionar o repertório, estudar e pensar nos arranjos, ao lado do antigo amigo e companheiro musical, o produtor Thomas Bartlett (com quem trabalhou em Agora). Os outros colaboradores também foram escolhidos a dedo. Patrick Dillett cuidou da mixagem, os arranjos de guitarra feitos por Guilherme Monteiro, e seu primo de segundo grau, Chico Brown, ficou responsável pela bateria. A capa escolhida é uma antiga fotografia de Bebel, ainda menina, dando um beijo no rosto do pai. O registro afetuoso foi clicado por Miúcha.

João e Bebel
João com Bebel pequena (Bebel Gilberto/arquivo pessoal)

Quando, finalmente, começou a gravar, ela sabia exatamente o que buscava e como queria fazer. E é com saudade do Brasil que ela começa o disco, com a canção “Adeus América”, uma música que ela diz que demorou para entender. “Aquela música foi a história dele”, acredita. Dentre os clássicos que compõem o repertório, também estão “Amoroso”, “A Valsa”, “Eu vim da Bahia” e “É Preciso Perdoar”. 

Na entrevista abaixo, Bebel conta mais detalhes sobre os bastidores do álbum João, fala sobre as influências seu pai e da bossa nova no seu repertório musical e revela como tem amadurecido a ideia de luto e da morte.

Você chegou a dizer que o álbum é uma carta de amor ao seu pai e que essa é a primeira vez que toca músicas do repertório dele. Imagino que tenha sido um processo difícil. Por que escolheu apenas agora?
Eu não acho que tenha sido sofrido, não. Acredito que tenha sido cauteloso. Meu último disco, Agora, foi muito espontâneo, eu estava escrevendo músicas. Eu me permitia estar em diferentes estados; ou seja, eu fazia gravações à noite, saía, bebia, voltava. Desta vez, não. Foi um disco muito pensado, feito com cautela e foco. Estávamos em tempos diferentes, era pós-pandemia. Estava comprometida em criar algo muito próximo daquilo que meu pai gostaria, evitando, claro, imitá-lo. Mas, no que pude, em termos de repetições e citações de arranjos, eu aproveitei. Porque são arranjos de músicas com um histórico. Há também muitos detalhes, já que foi um disco de baixo orçamento; minha gravadora é pequena. Demorou mais tempo para ser lançado devido a todas as burocracias envolvidas na produção do vinil, entre outros fatores. O planejamento, por vezes, precisa ser feito com sete a oito meses de antecedência.

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Bebel Gilberto
(Bob Wolfenson/divulgação)

Quando começou a produção?
Quando vim me vacinar, em 2021. Na época, a vacina da Covid-19 ainda não tinha chegado no Brasil, e, como sou americana, vim aqui com esse foco. Aproveitei e fiquei por mais um tempo, passei meu aniversário em maio e comecei a me encontrar com o Thomas já com esse objetivo em mente. Estava em contato com a gravadora PIAS, então era só dar início ao projeto. Comecei a selecionar o repertório aqui em Nova York. Inicialmente, começamos apenas nós dois. Depois, o Guilherme se juntou e fez os arranjos, estudou tudo detalhadamente. Mas também me considero como arranjadora, eu sabia muito bem o que queria.

Se pudesse, teria cantado a maioria das músicas no tom dele (João Gilberto), mas é muito alto para mim. A concepção, no entanto, é bastante similar ao que ele fazia. Aproveitei o que ele tinha de bom e o transformei no meu som. Houve também a contribuição do Thomas, com acordeão em Undiú, trombone em O Pato e flautas em Eclipse.

Você estava bastante segura então.
Sim, iniciamos as gravações em 2021 e retornei ao Brasil em julho, pois não era viável permanecer aqui por mais tempo, já que não estava mais morando em Nova York. O projeto ainda não estava finalizado e o Thomas estava extremamente ocupado. Ele estava trabalhando com a Taylor Swift, gravando com a Florence Welch e muitos outros artistas, portanto não havia disponibilidade. Tive que fazer viagens de ida e volta para Nova York. Acabei ficando na casa de uma tia querida, que ficava próxima ao estúdio, e isso foi muito útil para a conclusão, pois estava longe do barulho e da agitação de Nova York, próxima à natureza, com horários regulares para dormir e acordar. Foi uma experiência completamente diferente das tensões diárias que enfrentava quando morava aqui, ou quando estava casada.

Bebel Gilberto
(Bob Wolfenson/divulgação)

Como está sendo a turnê por aí nos Estados Unidos?
Os shows foram ótimos, todos lotados. Continuo morando no Rio, mas o trabalho acaba sendo mais aqui. 

E como foi o seu retorno para o Brasil?
Me mudei em 2019. Saí para fazer um show na Ásia e cheguei ao Brasil no natal. Mas veio a pandemia e fiquei presa. Então, comecei a pensar em tudo o que queria mudar, porque nunca tive uma casa própria. Passei muito tempo planejando e fazendo reformas. Passo pouco tempo lá. É ótimo, estou perto da minha família, mas gosto mesmo é de estar aqui (em Nova York).

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No Rio, tento ser mais disciplinada e ter uma rotina mais estruturada. No entanto, aqui não me sinto tão sozinha como no Rio. Infelizmente, é o que acontece. Aqui, no pior dos cenários, sempre há algo para fazer. Vou ao cinema com a Ella, minha cachorra, assisto a filmes que não estava esperando ou me meto em museus. Acabo não me sentindo tão solitária.

Me divorciei há 10 anos e depois reatei com meu ex-namorado, mas ele morava em Los Angeles, então era um relacionamento à distância. Não moro com ninguém há quase 10 anos. Aqui, saio com a Ella, vou a restaurantes onde ela pode entrar comigo, dou uma paquerada. Em qualquer lugar, posso me sentar sozinha, com qualquer roupa; ninguém me olha torto, não há preconceito.

É diferente no Brasil?
Não posso reclamar. No Brasil, as pessoas abraçaram bastante o lançamento desse disco. Sinto que quem gosta de mim, gosta sinceramente. E com certeza, irei para o Brasil fazer shows. Cada pessoa que vem e elogia meu trabalho, isso é muito significativo para mim. Que isso não seja confundido com minha solidão e com minha dificuldade de me readaptar.

João e Bebel
Foto de infância de Bebel e João (Helga Ancona/arquivo pessoal)

Você mencionou recentemente que sente muita saudade de seu pai, de poder ligar para ele e buscar conselhos. O que acha que ele diria sobre o álbum?
Quando gravei, já não estava mais pensando dessa forma. Acredito que o que ele mais admiraria seria a minuciosidade e o comprometimento com o perfeccionismo na musicalidade, semelhante ao dele. Talvez no canto, eu tenha me permitido ser mais solta. No entanto, no arranjo, na abordagem e na seleção do repertório, acho que o surpreenderia bastante.

Você se acha muito parecida com ele?
Com certeza, eu herdei o mesmo temperamento. Tenho minhas variações de humor, sou bastante sedutora, tenho senso de humor e sou tão dedicada à música quanto ele. Havia muita afinidade entre nós. Eu e meu pai compartilhamos uma sintonia muito profunda.

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Eu viajava com ele. Quando ele vinha para o Brasil, não me deixava voltar. Muitas vezes, tinha a passagem marcada para ir embora, mas ao chegar na casa dele, acabava ficando. Ele perguntava: ‘Você não vai embora, né?’ E então, quando eu via, permanecia lá por três dias. Eu não contava para ninguém, era só entre nós dois. Então, no dia seguinte, eu ligava para minha mãe e dizia um ‘oi’ alongado, e ela já sabia que eu não tinha ido embora. E eu respondia: ‘Exatamente, venha tomar café conosco’. Ela morava na esquina da casa do papai. Eles eram muito amigos.

Bebel Gilberto
(Vicente de Paulo/divulgação)

E a música estava sempre presente nessas reuniões?
Sim, havia sempre um compromisso com a música, mas ainda mais com as tradições familiares. Meus pais eram muito ligados à família. Tínhamos uma relação de amizade muito sólida. Claro que a música nos unia, mas também tinha o café, o bolo, o Vatapá, o fim de tarde, o luar. A música também fazia parte desse universo. Sempre havia cantoria. Eu costumava dizer ‘Chega, né, papai, não vai começar o concerto em dó maior de novo’. Todo mundo ficava em silêncio, e a gente começava a cantar.

E o que vocês gostavam de escutar e cantar?
Sempre eram as músicas que ele queria. Muitas influências dos anos 1990. No final, cantávamos muitas músicas interessantes; a última que estávamos cantando muito era Por Causa de Você, de Dolores Duran.

Quando escutamos as suas canções, são notáveis as influências de seu pai e da bossa nova, mas você soube criar sua própria linguagem e fica evidente que você decide trilhar um caminho próprio. Como foi para você a descoberta da sua própria personalidade musical? O que esse álbum traz de novo?
Fui desenvolvendo isso inconscientemente. Já sentia uma forte ligação com a música, e quando vim morar em Nova York, comecei a ouvir Björk, George Michael, Prince, Zero 7, David Byrne. E todas essas influências foram criando outro mundo na minha mente, e assim eu estava desenvolvendo meu próprio estilo musical. Eu frequentava muitos shows, estava muito conectada com o que estava acontecendo. Quando conheci o pessoal do Smoke City, já estava muito preparada musicalmente para seguir na direção que eu desejava. Portanto, quando fiz o álbum em homenagem ao meu pai, já estava à vontade, principalmente porque ele não estava por perto para me criticar.

João e Bebel
João e Bebel, em 1968 (Bebel Gilberto/arquivo pessoal)

O que você aprendeu com este álbum?
Acredito que ainda não aprendi muito. Devo aprender quando as pessoas ouvirem e expressarem suas verdadeiras opiniões sobre ele. Ele ainda parece muito presente em minha mente.

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Nos últimos anos você sofreu perdas de pessoas muito próximas a você. Como você tem amadurecido a ideia de luto e da morte?
Hoje em dia, tenho um medo intenso de morrer. Enxergo a vida de forma diferente, esse medo me assombra. Até tenho alguns pequenos ataques de pânico antes de dormir, pensando na possibilidade da morte. Talvez seja por conta de tantos compromissos e preocupações na minha cabeça, coisas que ainda não consigo controlar, aqueles velhos pensamentos. As pessoas dizem que nos viciamos em pensamentos negativos e acabamos dando muito espaço para eles. No entanto, tenho praticado várias técnicas de meditação, evitado ter TV ou celular no quarto, seguindo métodos de feng shui. A vida é frágil e me sinto muito solitária. Também tenho medo pela Ella, minha cachorra, porque sei que ela não viverá para sempre. Lidar com o conceito de morte é algo complexo para mim.

Bebel Gilberto
(Bob Wolfenson/divulgação)

E quem é Bebel aos 57?

Uma velha garota marota. Eu não me considero com 57 anos. Tenho certeza de que ainda sou uma criança. Outro dia tive um ataque de riso durante um show. Eu disse: ‘Agora estou percebendo o quão velha estou, ao ver todos vocês, um monte de cabeças brancas’. E eu, achando que não tenho cabelos brancos. É engraçado, nós vemos nossos amigos, pessoas da nossa geração, envelhecendo, e não conseguimos acreditar que temos essa idade. 57? Não, não tenho essa idade de jeito nenhum.

O que você tem gostado de escutar atualmente?

Escuto muito Björk, David Byrne, Dolores Duran e João Donato. As canções de Donato têm sido a abertura de todos os meus shows. Ultimamente, tenho ouvido muito o grupo Blue Nave.

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Por último, qual é a canção de seu pai favorita? É O Pato?

Não, “É Preciso Perdoar” é minha preferida. O vídeo que fizemos foi uma homenagem à Sinéad O’Connor, inspirado em “Nothing Compares 2U”. Ele foi produzido pouco antes da morte dela. Doido, não?

capa do disco João de Bebel Gilberto
(Bebel Gilberto/reprodução)

 

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