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Samba, Jesus Cristo!

Em mais um texto quinzenal para Bravo!, nossa colunista divide lembranças preciosas da celebração da data em família

Por Luana Carvalho
Atualizado em 2 fev 2024, 11h19 - Publicado em 20 dez 2023, 19h12
 (Laís Brevilheri/Redação Bravo!)
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Natal lá na minha casa, todo mundo bebe, todo mundo samba. Há mais de 40 anos é assim. Amo o Natal. Herança de minha mãe, de meu avô. Entendo a melancolia das pessoas, já perdi muita gente, nesses dias costuma doer um pouco mais. Mas lá em casa é dia de festa, de celebração da vida, do nascimento do salvador. Sou macumbeira e adoro Jesus, tudo junto. Venero as santas também, suas histórias. Fé é um modo de saber existir e deveria ser indiscutível o respeito à existência de cada um. Quando falo do nascimento do salvador, me refiro menos a Cristo, mais aos que me salvam, de fato, todos os dias. Àqueles que frequentavam nossa casa nos 25 de dezembro: Nelson Cavaquinho, Cartola, Aracy de Almeida e Orlando Silva (estes graças ao vô João Francisco, antes mesmo de eu existir), Dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus, Cartola, Candeia, Martinho da Vila, Luís Carlos da Vila, Zeca pagodinho, João Nogueira, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Sombra, Sombrinha, Beto Sem Braço, Serginho Meriti e tantos outros. Era roda de samba pra santo nenhum botar defeito.

Sempre depois das 5 da tarde, os que podiam traziam uma sobra de suas confraternizações pra completar a mesa. Os que não tinham condições passavam a ter na nossa casa. Compositores que moravam mais distante, esses, minha mãe mandava buscar. O importante era que o pessoal que suava o ano inteiro com seus tambores, cavacos e banjos, nos fundos de quintais ou palcos do país (em geral, mal remunerados) tivesse direito a Natal. E que a “cozinha” (como nos referimos ao batuque) fosse de responsa. Quantos clássicos do samba foram gravados surgidos daquela reunião! Cada um ia mostrando suas músicas e era sagrado ouvir com deferência. 

Todo mundo ganhava presente. Especialmente as crianças. Ricas ou pobres, Papai Noel não se esquecia de ninguém. Não esqueço um 25 sequer. Uma vez, o “bom velhinho” contratado furou em cima da hora, e o Almir Guineto – imaginem em que condições etílicas – foi escalado para entrar de sub. Foi nesse dezembro que descobri que tudo não passava do mito de Odin, da lenda de São Nicolau ou da tal farsa criada pela Coca-Cola. Papai Noel não existe, Almir fez questão de gritar. Meu mundo caiu. Coca-Cola é isso aí. O Brasil não merece o Brazil. Mas a sorte de assistir a Almir Guineto entoando um “ho ho ho”, nem toda fortuna da família Pemberton pagaria. Era um verso de partido alto pra cada nome de filho presenteado. E as palmas, sempre as palmas.

É que lá em casa, Papai Noel era invariavelmente preto (os originais e os substitutos) e trazia o mesmo exato presente pra todas as crianças. Eu achava aquilo muito impressionante. Porque era como se a galera do Polo Norte que descesse pela minha “lareira” fosse diferente se comparada às imagens convencionais de Noeis e duendes. Como se o Pólo Norte ficasse afinal no Brasil. E a utopia socialista se exibisse naquela meia-noite. As nossas festas sempre tiveram pouca gente branca, apenas uma parte da família. Portanto era natural que Noel, Jesus, Maria, representassem aquela maioria. A pirralhada ia à loucura! Era bonito. A intimidade com que uma criança preta senta no colo de um Papai Noel preto, não sei se vi algum dia nos estereótipos de shopping. Mas pode ser só mais uma visão romantizada da criança branca que fui. Entre tantas pretas. Ou da adulta antirracista que aprendo diariamente a ser, tropeçando, infelizmente, o tempo todo.

Então quando descobri que Papai Noel não existe, pelo âmago de tudo, foi como se caísse, não só um trenó inteiro na minha cabeça, mas também por terra toda aquela falsa ideia de democracia. Minha mãe, uma mulher branca, comprava centenas de presentes e dava na mão de um preto para que ele, vestido de velho barbudo, conduzido por renas oriundas de algum vilarejo na neve, os entregasse. O exímio poema ruim; uma grande festa fornecida pela classe média alta, em sua mansão na zona sul do Rio de Janeiro, como fosse plausível redimir a discrepância econômica entre morador e visitante com peru e cachaça. Sendo reducionista, no caso. Porque a história dessa mulher branca se cruza profunda e especificamente com a desses convidados e o que se constrói a partir desse sodalício, creio, é bastante mais amplo e revolucionário. Mas, sim, ficou complexo o entendimento. Até hoje. Como complexo é o nosso país. 

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(imagem gerada por Laís Brevilheri usando Midhourney/Redação Bravo!)

De todo modo, o que irrompe minhas recordações, e reverbera todo fim de ano, é o amor pelo Natal. O evento acabou por se transformar numa espécie de marco extraoficial do calendário da cidade. A premissa era fazer o máximo de gente feliz. Com boa música, comida e os presentes. Sobretudo os presentes, todos aqueles ícones da cultura nacional. Cheguei a conhecer um bocado de gente na minha própria sala. Mais de 800 pessoas no quintal, certa ocasião. Vi romances começarem, inclusive meus. Acho que quase toda Música Popular Brasileira, e uma bela parcela de sociólogos, antropólogos e políticos, passou algum 25 conosco, ao menos uma vez (também os brancos). De João a João, Vinícius, Tom, Marcus Valle, Chico, Caetano, Gonzaguinha, Dominguinhos. E ainda, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Sergio Cabral (pai), entre outros. Minha cabeça guarda muitos e provavelmente inventa outros. Mas isso faz parte da magia da data; criar é sobretudo viver. 

Guardo essa infância de bambas num coração de gritos e bandeiras. Em 2024, vou inaugurar o Natal da Madrinha aberto ao público. Uma roda de samba formada pelos grandes músicos que integraram a banda da Beth em seus mais de 50 anos de carreira. E artistas cuja trajetória se cruza fundamentalmente com a dela. Agora no calendário oficial. Será um evento beneficente com renda destinada ao Hospital do Câncer (doença que a levou ao falecimento). Tomara que até lá eu já tenha aprendido a elaborar melhor tantos contrastes. Ao menos o suficiente pra que seja uma festa, como minha memória folclorista gosta de guardar: democrática. 

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Seja lá onde for o lídimo Polo Norte sulamericano, uma coisa ninguém tira das lembranças de quem esteve numa dessas celebrações: Jesus Cristo é pagodeiro, Maria das Graças é passista, Papai Noel é baluarte, e Beth Carvalho sempre soube quem são a verdadeira Santa Ceia do Brasil. 

Feliz Natal, galera! Que haja ginga nos sinos de vocês.

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