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Conversa & Canção: A invenção de Lenine, um camaleão com linguagem própria na MPB

Leia a coluna de estreia do produtor musical na Bravo!

Por Maurício Pacheco
Atualizado em 14 abr 2025, 14h25 - Publicado em 10 abr 2025, 07h00
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 (Facebook/Lenine/reprodução)
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Oswaldo Lenine é uma daquelas figuras imprescindíveis para a nossa cultura. Um artista ímpar, com uma história pessoal tão inspiradora quanto improvável, dentro da complicada indústria da música.

Como diz o ditado: “se Lenine não tivesse aparecido no nosso cenário, teríamos que inventá-lo”. Depois que se conhece o repertório do artista pernambucano, é difícil imaginar a música do Brasil sem suas rimas, melodias e sua ambição global de ser cada vez mais brasileiro e conectado até a raiz com os folguedos, os maracatus, a cultura árabe e a também africana.

Mas sua estrada, construída na contra-mão de um mercado que em sua época não aceitava um caminho artístico que não passasse por uma grande aclamação popular, o levou a um ostracismo de uma década, período no qual ele passou pacientemente se nutrindo de tudo o que seria importante para o desenvolvimento de sua autoralidade poética e musical.

Desde Baque Solto, seu début gravado em parceria com Lula Queiroga em 1983, até o lançamento de Olho de Peixe, Lenine passou 10 anos sendo sistematicamente ignorado pelas grandes gravadoras. Restou a ele então se posicionar como compositor, fornecendo canções para diversos artistas, desde Tim Maia a Maria Bethânia e Elba Ramalho.

Mas o Brasil não poderia abrir mão do artista que disserta, que desperta e que encara o palco com sua voz rascante e imponente de pernambucano nato. E Oswaldo inventou o Lenine que passamos a conhecer: um camaleão com linguagem própria, evocando desde Jackson do Pandeiro até o espírito dos primeiros aboiadores do agreste pernambucano. 

Enquanto me preparava para entrevistá-lo, comecei a reouvir em minha cabeça suas canções. Todos nós temos a capacidade de armazenar na memória um sem número de arranjos complexos e inteiros, só não conseguimos reproduzi-los com a boca, pois só conseguimos emitir uma nota por vez. Mas, em minha cabeça, lembro com clareza da levada de caboclinho de Marcos Suzano que dá a pulsação de Leão do Norte, seguida do inconfundível violão percussivo de Lenine, e um arranjo vocal que emula a polifonia dos pifes. Leão do Norte, vale lembrar, é um dos mais emblemáticos temas do compositor pernambucano, lançado no Olho de Peixe, seu álbum em dupla com o inventor Suzano. O pandeiro brasileiro nunca mais foi o mesmo depois desse álbum. 

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Voltando a Lenine, e querendo buscar sentido no novelo de sentimentos que vinham aparecendo à medida que eu lembrava de suas canções, comecei a me perguntar: como se produz um Lenine? De que matéria é feito um artista tão abrangente? E assim, exatamente dessa forma, perguntei a ele durante nossa entrevista no palco da FLIM, a Feira Literária Internacional de Maricá, observado pelas cerca de 600 pessoas que acompanhavam atentamente a nossa conversa.

A pergunta provocativa soou bem, e depois de um leve sorriso, Lenine começou a me olhar e maquinar por qual caminho seguiria com sua resposta. Com mais de 30 anos dedicados ao ofício de ser um artista brasileiro, ele já teria bagagem de sobra para falar sobre sua história e enaltecer suas próprias qualidades. Lenine preferiu contar algumas histórias sobre sua família, o que acabou se mostrando mais enriquecedor para os receptores de sua mensagem.

Falou sobre a relação com o seu pai, a descoberta do divino através da música, e no mesmo período falou sobre a tecnologia do rádio de ondas curtas — por onde ouvia canções árabes e napolitanas na infância — e sobre a chamada “tecnologia do afeto” (termo cunhado por ele), exaltando a importância de ouvir, antes de qualquer coisa. Para ele, esta é a maior invenção do ser humano, que nos permite viver em harmonia, preservando toda a complexidade de cada um.

Para Lenine, inclusive, tudo começa no ouvir. Afinal, a música é realmente um diálogo entre os instrumentos, que criam e alternam ciclos de frases e toques que compõem uma malha sonora que caminha pelo ar até vibrar nos nossos tímpanos. E foi ouvindo em sua cabeça a polirritmia do caboclinho que Lenine traçou a linha rítmica e melódica para os versos de seu parceiro nessa canção, Paulo César Pinheiro. Começa então uma profusão de imagens simbólicas da cultura nordestina, culminado no refrão “Eu sou mameluco, sou de Casa Forte, sou de Pernambuco, sou Leão do Norte”, fazendo alusão tanto à potência da cultura popular regional, quanto ao Leão do Norte, mascote do Sport Club do Recife, o clube de afeição do compositor.

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Para os mais atentos, o verso “sou de Casa Forte”, que remete ao famoso bairro de Recife, ainda abre outra janela musical, para o clássico de Edu Lobo, composto em uma de suas viagens à capital pernambucana.

E a conversa seguiu, improvisada como uma embolada de Jackson. Lenine disse que por vezes fica aperreado com o processo de compor. “Já faço isso há muito tempo, então fico sempre querendo encontrar trilhas que ainda não percorri e palavras que ainda não disse”.

Sobre a palavra e nossa língua-mãe, Lenine fez uma observação interessante, a partir de um encontro com o compositor camaronês Blick Bassy: “Eu disse a ele que iria me ausentar do estúdio por um dia, pois tinha um show a fazer, e voltaria na segunda-feira. Quando disse que o show era a 3 horas de distância, ele me perguntou se era de carro, e eu disse que não, que seriam 3 horas de avião. Ele ficou espantado e disse – e vocês todos falam a mesma língua?”, relembrou.

Camarões tem cerca de 100 dialetos, e quando eles querem se compreender entre si, falam francês. Isso é que é fascinante no Brasil. Eu não sei aonde esse tratado de Tordesilhas nos levou nesse isolamento linguístico aqui na América do Sul, que fez a gente criar uma língua tão sedutora, maleável e cheia de nuances e sons, mas essa língua é definitivamente a minha grande ferramenta. A delícia de descobrir as palavras, de onde elas vêm e como se formaram. Por isso que eu falo que sou um colecionador de palavras”, emendou Lenine. 

Aliás, um outro ensinamento do músico, que se autodenomina “colecionador de palavras”, foi nos ensinar a origem da palavra “aperreado”. Vem de perro (cachorro em espanhol), pois no período da América colonial, os espanhóis usavam cachorros para perseguir os indígenas, que ficavam obviamente nervosos, “aperreados”. 

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E seguimos falando de rimas e melodias, cantadas a esmo por Lenine com sua voz de trovador, explicando que sotaque é tudo para a expressão de um povo. Por isso o Brasil é tão rico musicalmente, pois falamos a mesma língua, mas temos uma grande variedade de sotaques. 

O cuidado com a palavra e o uso da língua portuguesa como língua de ritmo silábico, são marcas do compositor pernambucano, como nas rimas visuais de Meu Amanhã (minha meta, minha metade, minha seta, minha saudade; ou minha diva, meu divã, minha manha, meu amanhã…), ou nos versos de Rosebud (Dolores e Dólares…). Lenine usa os fonemas e as divisões da língua falada para criar imagens sonoras, brincando até com rimas translíngues como em A Ponte (Nagô, Nagô, Na Golden Gate).

Lenine pontuou que só a língua portuguesa falada no Brasil poderia gerar os versos ritmados de Construção, de Chico Buarque, por exemplo, em que cada sílaba é cantada com a mesma duração de tempo (Mor-reu na con-tra-mão a-tra-pa-lhan-do o trá-fe-go). Na língua portuguesa européia, “atrapalhando” é pronunciado de uma forma distinta, com a contração das vogais “a” antes das consoantes, o que não permite alongar tanto a pronúncia. 

Ainda não tinha me saciado até aquele momento sobre as belezas e angústias do processo criativo do pernambucano, e abri outro caminho sentimental na conversa, perguntando sobre Paciência, uma das canções atemporais de Lenine. Essa canção ganhou importância durante a pandemia, como um bálsamo em meio a um período de tantas privações.

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“Nunca imaginaria que essa canção se tornaria o que se tornou. Já tinha sido um sucesso em seu lançamento, tocando em rádios, TV. Mas houve uma redescoberta dessa canção durante a pandemia. As pessoas se agarraram à letra como um hino de esperança. Mas o curioso é que na letra eu digo que finjo ter paciência, ou seja, é uma canção que fala sobre angústia, e justamente da necessidade de se ter paciência.”

Paciência é uma prova viva da máxima que se diz sobre as canções, que depois de lançadas, não pertencem mais a seus autores, e são incorporadas pelo povo. O tom de súplica da canção bateu fundo no coração dos brasileiros durante o período mais crítico da pandemia do Covid-19, com versos que soam tão proféticos como restauradores:

“Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
E o mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência”

Lenine, além de nos maravilhar com melodias e letras que nos sofisticam, também nos ensina a ouvir. 

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Sua música passa por esse caminho: da transmissão de sabedoria, experiências e culturas. É isso que faz com que suas canções sejam tão multifacetadas quanto sua persona artística, e tenham inúmeras interpretações. É a riqueza que a poesia traz. 

Toda essa riqueza se deve à invenção de Oswaldo, ao longo de uma década em modo fantasma. Década que se mostrou frutífera, sendo utilizada com resiliência para afiar sua pena e transformá-lo em um conector fundamental entre as diversas tradições do nordeste e o Brasil do presente e futuro.

Playlist – A Invenção de Lenine 

  1. Leão do Norte – Lenine
  2. Casa Forte – Edu Lobo
  3. Construção – Chico Buarque
  4. Meu Amanhã(Intuindo o til) – Lenine
  5. Jacksoul Brasileiro – Fernanda Abreu
  6. Amigo do Rei – Tim Maia & Os Cariocas
  7. Paciência – Lenine
  8. Y’a des Garçons – Fabulous Trobadors
  9. Nem o Sol, nem a Lua, nem eu – Maria Bethânia 
  10. Diz Assim – Galego Aboiador
  11. Nannuflay – Tinariwen
  12. Fafa – Vieux Farka Tour
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