Dead Fish canta sobre memórias contra o autoritarismo
Novo disco da banda de hardcore, "Labirinto da Memória", faz uma viagem no tempo para nos lembrar que as ameaças continuam a nos bater à porta
O rock nacional começou o ano pegando fogo. Na última semana, a banda veterana de hardcore Dead Fish lançou seu novo álbum, Labirinto da Memória. Trata-se do décimo quinto disco do grupo – entre compactos de inéditas e álbuns ao vivo -, que começou sua trajetória há mais de 30 anos no Espírito Santo.
Com uma sonoridade tradicional de hardcore melódico, Labirinto da Memória tem como ponto alto sua temática: é um disco que fala sobre a história recente do Brasil sob a ótica do vocalista e líder do grupo, Rodrigo Lima, que assina a maioria das letras do álbum. Elas falam sobre infância, amigos, família, mas também sobre a Ditadura, sobre lutas, desigualdades e mágoas com uma nação que insiste em apostar no atraso social.
Diferente do álbum anterior do Dead Fish, Ponto Cego, este é menos raivoso. Os tempos são outros, já que o álbum foi lançado durante o governo de Jair Bolsonaro, mas Labirinto da Memória não deixa de tocar nas feridas que foram reabertas durante o período. Cantando sobre esse autoritarismo, Rodrigo espera cativar uma nova geração de fãs.
Nesta semana, aproveitando o feriado de aniversário de São Paulo, o Dead Fish faz dois shows gratuitos no Tendal da Lapa, nos dias 25 e 26. Nós aproveitamos a ocasião e conversamos com Rodrigo Lima sobre o lançamento. Confira:
Labirinto da Memória é um disco que soa bastante pessoal. As letras parecem trazer muitas experiências suas, assim como as ideias do disco, as mensagens das músicas. Como foi o processo de fazer esse disco que é bastante íntimo?
Tudo começa com Ponto Cego. Começo a pensar neste álbum durante a gravação de Ponto Cego. Porque o álbum anterior é uma fotografia de momento. Ele sai pronto, pintado e com validade para ficar datado. Já Labirinto da Memória, não. Queria fazer um álbum de memórias inspirado em Realismo Capitalista e Meus Fantasmas, duas obras de Mark Fisher.
Eu queria que fosse uma coisa de memória coletiva, mas não teria como acessar uma memória coletiva se não falasse do que eu vivi, da minha realidade coletiva. Então, como os outros integrantes da banda escreveram muito menos e tocaram muito mais, ficou muito mais na cara que é um álbum de memórias meu.
O Dead Fish fez 30 anos, você completa 51 em feveriro, mas a banda, as letras e o caráter de vocês está intacto, né? Além disso, tem uma maturidade muito presente nas músicas. Como você vê sua evolução como compositor e como músico?
Não dá para fazer um disco como Sonho Médio aos 50 anos. Eu tenho uma questão com a maturidade, porque a minha vida inteira quis ser punk. Quis ter um vigor físico e até uma imaturidade que me ajudava a ter ar, a ter potência, sabe? Mas agora não, nesse disco eu entendi que, pô… Eu tenho 50 anos, estou no punk, mas tenho pares ali, tenho pessoas com quem eu consigo falar olho no olho. Clemente, Gabriel Zander, caras de bandas como o Garage Fuzz. Então, tem gente que tá ali junto comigo.
E eu me permiti falar, cara. Me permiti tentar contar pra essa rapaziada como foi. Não quero que ninguém fique nostálgico, não é essa a intenção. Quero só dizer como é que era, e daqui pra frente a gente pensa no que vem, sabe?
Você tem uma filha?
Tenho uma menina, e isso foi um gatilho importante. Ela está com 8 anos agora.
E aí a paternidade e esse cenário de futuro sombrio pesaram?
Minha filha é PCD, deficiente auditiva, e nós descobrimos na pandemia. Isso pesou também, quero contar para ela como foi a minha história. “Aos Poucos” é uma música feita subindo e descendo a ladeira, levando ela pra creche, depois pra escola. Então é mostrar como eu vivi e deixar que ela interprete, bem como deixar que os moleques que vão ouvir esse álbum, se é que vai ter algum moleque que vai ouvir esse álbum…
Você ficou com receio de cair numa coisa do punk velho, moralista, saudosista?
É perigosíssimo, né? Mas nunca tive essa coisa de falar que no meu tempo era mais legal, não mesmo. Acho que cada um tem o seu tempo. Coisas ruins e coisas boas. Sabe?
Eu acho que nós tivemos muitas coisas boas nos anos 1990, como a calma, esperar o correio chegar, ouvir as demos das músicas… Isso nos dava uma amplitude mental. Hoje, a molecada tem tudo, toda hora, o tempo todo, e não consegue valorizar. Sabe? Mas eu acho que hoje é melhor. Porque a informação está aí, sabe?
Você falou de jovem ouvir. Quem é o público do Dead Fish hoje?
Eu não consigo entender, porque houve muita renovação. E como permaneci em uma banda que mudou de integrantes, inclusive de idades mais novas dentro da banda, não consigo vislumbrar muito.
Sei que São Paulo tem renovação. Por exemplo, você vai no show do Hangar. É um show que nos afeta até mesmo fisicamente, de tanta energia jovem que existe no público. Acho que no Espírito Santo isso acontece, enquanto Curitiba e Belo Horizonte, menos. Eu acho que a média de público do Dead Fish vai dos 20 aos 40 e poucos. Os caras de 40 estão lá atrás tomando cerveja, os caras na frente do palco tem 20 e poucos, se mataram para comprar o ingresso e vão fazer valer a noite.
“Acho que nós tivemos muitas coisas boas nos anos 1990, como a calma, esperar o correio chegar, ouvir as demos das músicas… Isso nos dava uma amplitude mental. Hoje, a molecada tem tudo, toda hora, o tempo todo, e não consegue valorizar.
Rodrigo Lima
Vocês estão tocando desde os anos 1990, viveram o boom do hardcore e do emo nos anos 2000, a moda passou, agora voltou e vocês nunca pararam, sempre estiveram no underground. Para você, como foram as mudanças da música das gravadoras, a chegada dos streamings?
É tudo muito novo agora. Esperei seis meses para lançar Labirinto da Memória, sendo que antigamente, com o disco pronto, iríamos para a rua. Agora existe outra estratégia… Mas, viver na independência parece um dia da marmota em muitos momentos.
Falando sobre o público, essa molecada de aqui e agora, que viveu pandemia, eles têm uma amplitude de visão muito grande e muito menos paciência do que nós tínhamos. Essa molecada tem uma outra forma de encarar o que é o punk, o que é o hardcore, muito mais generosa, muito menos provinciana.
Quando comecei nos anos 1990, era tudo muito… tinha um limite. Hoje se eu quiser escutar punk hardcore na Indonésia, vou achar. Hoje, o moleque vai atrás, tudo bem que vai errar, errar, errar, e vai achar que não está errando, e aí depois vai acertar o caminho.
E mesmo numa discussão de ideias, né? Porque o hardcore e o punk formaram uma geração de pessoas que tinham uma ideologia determinada, mas hoje há muito mais conflitos no debate de ideias…
Existem muitos ruídos e muitas incompreensões, e, principalmente pra mim num certo nível, e propriamente para eles, é um choque geracional em muitos momentos. Já percebi isso no passado, que eram choques geracionais, porque no caso de Dead Fish é mais de uma geração, já tem uma terceira chegando ali, ou quarta, sei lá quanto que dura uma geração hoje. [risos]
Eu acho que tínhamos pautas muito retas. Os zines nos deixavam muito dentro de um assunto. Hoje você tem o punk nordestino, que tá envolvido com mais de um zilhão de estéticas, um zilhão de pautas; tem o punk de São Paulo, que é um punk super tradicional, que tá aí há quase 50 anos; tem o punk e o hardcore capixabas, que se criaram no isolamento. Então, enfim, a gente tem tudo aqui, tem as especificidades locais de cena e o conflito geracional. Então é muita coisa, é um mundo.
E falando sobre suas memórias, você canta sobre a ditadura e outras coisas que acabaram batendo nossa porta novamente. Completamos um ano do 8 de janeiro e o sentimento geral é de impunidade…
Como tudo no Brasil, não é? O sentimento é de impunidade.
Como você está se sentindo tendo que cantar pra essa geração aquilo que já foi e está voltando?
8 de janeiro, um monte de nazi fazendo um tanto de coisa que antigamente eles falavam que era antidemocrático. A ditadura, os milicos não pagaram, os milicos nunca… Acabei de ler um livro do Marcelo Rubens Paiva e… Newton Cruz, Paulo Maluf, esses caras que estavam na estrutura de Estado nunca foram denunciados. Quem pagou pelo Riocentro? Os assassinos da criança Araceli Crespo, violentada por uma playboyzada, nunca ninguém pagou. A galera do Canavial, os engenhos de cana, nos anos 1980, que receberam um monte de grana, nunca ninguém pagou. Os Collor estão aí, os Sarney estão aí, sabe? É sério que agora, no século 21, vai ter um 8 de janeiro e ninguém vai ser responsabilizado de novo? É um déjà vu de merda.
Você acha que falta rock hoje em dia pra falar isso?
Não falta. Tem o rap, tem o trap, tem as meninas do tecnobrega. Elas discutem tanto, é um universo tanto quanto o punk. É muito legal ter o punk, acho que a estética é necessária, acho que a gente tem que mudar ali um tanto de coisa, mas não se precisa só do punk, do hardcore, nem do rock. Tem um zilhão de outras estéticas discutindo coisas que, meu, a gente levou 10 anos com medinho.
E o rock é muito masculino…
Muito masculinizado. Tem que ser mauzão pra ser rocker. O emo quebrou isso, cara. Outro dia o André Barcinski me perguntou por que o emo ainda tá em pauta quando já é um revival muito próximo do que foi o fenômeno, e, cara, o Lucas Silveira, da Fresno, definiu bem. Foi a primeira vez que os rockeirão estavam com medinho, chorando e se expondo e dizendo que eles não eram tão machos assim
Você acha que o Dead Fish está no hall das grandes bandas brasileiras de rock?
Acho que sim, dentro da nossa estética. Mas não quero que isso me endureça, nem nos endureça internamente, sabe?
E turnê? Vocês estavam agora na Europa…
Tocamos na Europa em julho, foram várias datas. Tocamos para muitos imigrantes, e não só brasileiros. Foi muito interessante.
Como foi?
Vida de imigrante é dura, né? Para qualquer lado. E eu fiquei muito feliz de ter ido para a Europa 16 anos depois, porque vimos outra Europa. Em 2007, fomos com um tour manager alemão fazendo tudo. Agora, foi uma turma de produtoras e produtores. Foi bem diferente, foi uma visão de terceiro mundo na Europa, mesmo tendo as sete datas na Grã-Bretanha junto com uma banda inglesa. Quero voltar e fazer festivais pra ver como é.
“No punk, no rap, no hardcore, no techno brega, no heavy metal, no grime, no forró, a gente tem uma força, e a Margareth Menezes deve saber disso porque ela deve ter dados. É muito grande a força que temos. Somos muito múltiplos, muito variados.”
Rodrigo Lima
Falando nisso, o Dead Fish agora entra no circuito de festivais nacionais de novo?
Falamos para muitos nichos, porque somos mais velhos. Aí nos chamam para esses festivais com emo, e nem sempre casa tão bem. Por outro lado, acho que funcionamos no meio do metal, mas também em festivais que têm rap e outras coisas. Nós tocamos no Psica, foi muito interessante estar no Mangueirão em um evento da aparelhagem, do brega. Me senti muito à vontade.
Mas falta um circuito de festivais, com a força que a antiga Abrafin tinha?
Sinto falta. É uma coisa que não se empenhou ainda. Ninguém tentou debater nesse Ministério de Margareth Menezes. É preciso discutir isso porque foi uma iniciativa muito legal, apesar de eu achar que muitos deram errado por terem se fechado demais dentro de uma estética do rock. Os que sobreviveram, como Do Sol e Bananada têm uma estrutura muito boa. Acho que o Ministério Margareth Menezes tem que discutir o que foi feito e tornar a coisa mais de estrutura brasileira, sem ter preconceito. Principalmente com um roqueiro médio que fala besteira de vez em quando. [risos].
Agora essa turnê europeia retomou uma coisa que eu sempre tive plena certeza, que arte e cultura talvez sejam o produto mais forte do Brasil para ser vendido fora. Eu cheguei na Alemanha fazendo punk melódico em português em uma casa tradicional de punk e hardcore no Kreutzberg, em Berlim. E os alemães não são tão sorridentes e tapinhas nas costas, como nós sul-americanos. Eles assistiram com muita curiosidade o que esses moleques brasileiros estavam fazendo com essa estética tão gasta. E, meu, encheu a casa. Não era uma casa só de brasileiros. Tinha alemães, tinha gente de outros lugares. E eu achei interessante que eles acharam interessante estarmos tocando ali.
Então, no geral, no punk, no rap, no hardcore, no techno brega, no heavy metal, no grime, no forró, a gente tem uma força, e a Margareth Menezes deve saber disso porque ela deve ter dados. É muito grande a força que temos. Somos muito múltiplos, muito variados. Tem muita gente fazendo muita coisa, e muita coisa interessante não só pro Brasil, mas como para o mundo. Eu senti isso lá.
E shows aqui no Brasil?
Já temos shows marcados em Porto Alegre, Curitiba, vamos tocar em um festival chamado Delírio Tropical, em Vitória, um monte de banda capixaba na praia em Vila Velha. De graça. Tô louco, com medo. Porque a cena de punk e hardcore em Vila Velha sempre foi muito intensa, eu diria.
Ah, mas tá em casa, né?
Tô, mas com medo [risos].