Flor reinventa a herança de Gilberto Gil em disco de estreia bilíngue, íntimo e arrebatador
Neta do ícone da MPB, a cantora lança seu primeiro álbum intitulado "Cinema Love" costurando saudade, amor e referências familiares
Aos 19 anos, Flor Gil carrega um legado que poucos artistas podem sequer imaginar. Neta de Gilberto Gil, ela cresceu imersa em um universo onde a música era “religião”, como ela mesma define. Mas em seu álbum de estreia, a jovem cantora e compositora não se limita ao peso da herança familiar. Em vez disso, ela tece uma narrativa íntima, onde saudade, amor e autodescoberta se entrelaçam em canções que flutuam entre o português e o inglês, e entre a MPB e o indie pop.
O novo videoclipe da segunda canção do álbum, filmado sob o céu noturno de Nova York, chega como uma moldura que confirma a proposta do disco: transformar memórias amorosas em cenas e a própria cidade natal da cantora em cenário de romance. “Gravar esse clipe em Nova York foi significativo porque é de uma história que aconteceu lá. O clipe foi gravado em 16mm e isso criou uma estética nostálgica, que combina com a sensação de paixão que essa canção passa”.
Dentre os fios que costuram Cinema Love, vemos a saudade como gesto estético e afetivo, o bilinguismo como marca identitária e uma estética sonora que flerta com um ritmo mais suave. O álbum, lançado em abril, agora ganha um capítulo visual que reforça a leitura do projeto como uma “trilha sonora” em movimento.
Saudade e amor, pares que se atraem e se tensionam, são apresentados por Flor com a ambivalência de quem conhece o sentimento por dentro: “São dois sentimentos que sinto muito, e ao mesmo tempo sofro bastante. Agora, por exemplo, sinto saudade de tempos, e isso está muito presente no disco porque está muito presente na minha vida” disse ela em conversa exclusiva com a Bravo!.
A saudade aqui é representada por textura, cor e voz. E é também cronologia: muitas das canções, diz ela, foram estruturadas segundo uma ordem que tenta reproduzir épocas e afetos. “Ao longo dos últimos dois anos, fui escrevendo a história sobre minha vida amorosa. Aos pouquinhos comecei a ter mais músicas e virou essa trilha. A maioria das músicas estão em uma ordem cronológica.” Essa intenção narrativa aproxima o disco de uma fita cinematográfica em que cada faixa é um plano, e a sequência cria sentido.
A fluidez entre línguas e influências
Criada entre os Estados Unidos e o Brasil, Flor traz em seu trabalho essa naturalidade ao transitar entre idiomas. “Nasci em Nova York e fui criada meio pra lá, meio para cá e alfabetizada nas duas línguas”, diz ela, explicando por que o inglês predomina em boa parte do repertório e por que o álbum soa como encontro entre referências culturais diferentes. “…essa é uma parte de mim que eu não costumo dividir.”
A passagem revela algo crucial: o disco é também um gesto de revelação, de mostrar facetas íntimas de quem transita entre geografias e linguagens.
“Queria transmitir mais de mim mesma nesse álbum, antes de realizar expectativas do público e até de mim mesma”. E se a língua aponta direções, a família fornece o mapa. A relação com o avô Gilberto Gil aparece como campo afetivo e pedagógico: “Não é todo mundo que sabe, mas ele também usa muito a língua inglesa em suas músicas.”
Ao falar sobre lições e presença, Flor repete a ideia de que sua casa virou escola: “Só a presença dele ali já foi uma lição. E aprendi muito com a minha família em si. Meus tios, primos, minha avó, meus pais. Todo mundo da família é muito fundado na música do meu avô. Todos nós o ouvimos como se fosse religião”. Essa frase, entregue com um riso contido, sintetiza o modo como tradição e invenção se encadeiam no projeto.
Textura vocal e produção: a escolha do sussurro
Flor diz que o timbre íntimo e aveludado do disco surgiu como uma descoberta durante as gravações. Em estúdio, ela passou a cantar de forma mais sussurrada. “Meu avô falava: ‘Você está cantando tão sussurrado”. A produção de Barbara Ohana consolidou esse som, unindo MPB, indie pop e R&B no que Flor chama de “suave urbano”. Já as participações, com nomes como Carol Biazin em “PARADISE”, Maro em “CHORO ROSA” e Vitão em “SAUDADE” (com letra do avô), funcionam como pontes afetivas e cromáticas: algumas foram pensadas desde a composição; outras nasceram de encontros em estúdio e turnês.
Essa lógica de costura atravessa também o trabalho com sobras criativas. O Interlude, que Flor assinou na produção, nasceu desses retalhos: “Estava na brincadeira, sem muita pressão. Coloquei pra separar os dois momentos do álbum.. Tem trechos que não foram usadas em outras faixas e quis juntar”. A escolha de reaproveitar fragmentos transforma o disco em um objeto pensado, onde economia e experimentação se encontram para marcar a continuidade entre canções mais luminosas e momentos de maior introspecção.
Imagem e identidade caminham juntas. A capa — veludo vermelho, um animal que sugere força, o vestido clássico e o microfone — é, segundo Flor, uma tentativa de traduzir por imagem a sensação do disco. E a autoria dessa imagem reforça o caráter íntimo do projeto: “A Nikita, minha namorada, que fez.” Ao escolher alguém do círculo próximo para materializar a aparência do álbum, Flor encadeia o som à cena pessoal que o alimenta, consolidando a ideia de obra como extensão do vivido.
No videoclipe de Cinema Love, por exemplo, vemos essa mesma aposta visual. A cidade de Nova York é um personagem da trama. A peruca rosa, repetida como dispositivo entre capa e vídeo, opera como alter ego, fantasia e escudo: um elemento performático que interroga a construção de imagem e a proteção estética. E ao registrar a cidade à noite, vemos a mesma nostalgia pretendida pelo disco.
Questionada sobre futuro, Flor elabora uma resposta que mistura desejo profissional e um balanço de expectativas: “Me imagino focada. Quero muito conhecer mais gente, poder fazer mais parcerias… Me vejo muito daqui 5 anos fazendo isso e não parando. Se não der certo, faço de novo…” É essa vontade de seguir experimentando, com o suporte da biografia familiar e sua autonomia criativa, que define Cinema Love como obra de estreia: não um certificado de quem já chegou, mas um mapa para quem está aprendendo a se mover no seu próprio tempo.
Se o videoclipe inaugura uma estética, o álbum continua o trabalho: filmar memórias, traduzir saudade, modular a voz e escolher cuidadosamente cada cena, sonora, visual e performática. Neste disco, Flor Gil transforma a vida em dispositivo estético onde cidade, família e desejo se articulam em planos curtos que, somados, compõem uma narrativa maior. Uma obra que respira intimidade e abre espaço à invenção.
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