Salloma Salomão e a experiências sonoras da afro-diáspora
O multiartista fala sobre 'Ancestres de Prima Vera', seu décimo álbum de estúdio, e faz um balanço da carreira na música, no teatro e na educação
Músico, compositor, pesquisador, dramaturgo, educador. O multiartista Salloma Salomão carrega muitos predicados na carreira. Para celebrar seus 40 anos de criação artística e o lançamento recente do EP — Ancestres de Prima Vera, que está desde dezembro nas plataformas de streaming — Salloma fará um show com participações especiais de peso no Sesc Vila Mariana nesta quinta (18), em São Paulo.
A banda Sincrônica Al Andaluz e os artistas Fabiana Cozza, Allan Abadia e Maurício Pazz subirão ao palco para esta apresentação única. O show também antecipa seu próximo projeto, com previsão de lançamento para março deste ano.
O público pode esperar músicais como “Lira Ceciliana”, “Muzambinhos” e “Congos de Ouro” onde os timbres sonoros dos instrumentos ocupam posto de protagonista. Cordas, sopros, vozes, percussão, vibrafone, piano e bateria ajudam a compor a sonoridade orgânica com bases em musicalidades negras do século XX. Em entrevista à Bravo!, Salloma Salomão falou sobre os bastidores do disco, discorreu sobre seu legado e também sobre as mudanças e permanências da indústria fonográfica. Confira a íntegra abaixo e aproveite para ler a entrevista ouvindo ao disco:
Como foi o processo de construção do seu décimo álbum de carreira?
Quase sempre é um artesanato de ideia e dessa vez não foi diferente. Há uma ideia mestra que partiu de uma pergunta. Como é que que compositores negros t6em utilizado a garfia ocidental para grafar pensamento musical de origem africano. Pensava em Mesquita, Chiquinha, Pixinguinha, Paulo Moura e tantos outres orquestradores que conscientemente buscaram trabalhar elementos do pensamento ou culturas musicais africanas em seus repertórios. Convidei quatro jovens que entendem de escrita polifônica. O álbum é resultado desse encontro e desse principio histórico-filosófico.
E o que pode nos adiantar sobre o show no Sesc?
Estamos nervosos e estimulados. Tem um grupo formado majoritariamente por artistas negros e negras da cena contemporânea brasileira, temos a infraestrutura necessária para dar o melhor de nós para o público exigente, diverso e de gosto e eclético da cidade.
Como foi construir esse show com Fabiana Cozza, Allan Abadia e Maurício Pazz?
Desafiador, porque são pessoas muito conhecidas por seus álbuns e trabalhos autorais. Ao mesmo tempo são amigues querides que conhecem e gostam do minha pesquisa e musicalidade. Fazer isso com um time de 22 pessoas é uma aventura, devido a uma certa precariedade das condições que são impostas aos artistas negres das classes populares. Contudo, o resultado técnico e criativo final nada deixa a desejar em termos daquilo que circula no mercado cultural no campo de música instrumental e vocal.
O que a banda banda Al Andaluz trouxe de novo para o seu repertório?
Todo repertório, exceto quatro canções vocais, é inédito e faz parte do álbum Ancestres de Primavera. Concebemos noção de Sincrônica Al Andalus justamente pelo acréscimo do quarteto de cordas, sopros adicionais e um vibrafone.
Para este show, você visitou musicalidades negras do século XX. Poderia elaborar melhor essa experiência?
A hipótese é que os primeiros macro gêneros musicais que circularam pelo mundo desde o final do século XVIII têm origem africana, quais sejam: o Lundu, Fandango, Tango, Habanera, Rag Time, Jazz, Choro e Samba. É necessário visitar estas fontes, conectá-las ao presente e, principalmente, aos nossos desejos de futuro. É necessário arremessá-las contra as imposições estéticas e mercadológicas que vêm do hemisfério norte.
O que você aprendeu com esse disco?
Aprendi que música nasce no pensamento e se manifesta no mundo real e físico através de objetos sonoros e corpos, nossos corpos são plenamente humanos. Nossa música de origem africana tem alimentado o planeta com saúde criativa.
Você está celebrando 40 anos de carreira, como avalia seu legado musical e de educador de lá para cá?
Não sei se tenho um legado. Mas guardo dois mil mil álbuns de vinil. Mais mil álbuns em CDs e 400 DVDs de música. Fiz amigos e inimigos no meio cultural por conta das posições antirracistas que assumi. Devo ter tido contato com mais de 10 mil alunos ao longo da minha atividade de educador, que começou na Febem em 1986. São bens simbólicos. Tenho buscado como homem negro nessa sociedade viver da forma mais digna possível.
Como artista fiz boas e más opções o resultado concreto são os álbuns que as pessoas podem ouvir nas plataformas. Futuramente eu pretendo colocar na rede um banco de timbres capturados aos longo desse tempo. Alguns instrumentos vão deixar de serem utilizados, vão cair em desuso, como aconteceu no Brasil com a Marimba, Kalimba e Tihumba (instrumentos musicais vindos da África central). Então, algumes sujeites musicalmente marginais como eu poderão recorrer a esses sons.
Como era a indústria fonográfica quando você começou? E quais avanços você enxerga em 2024?
Era como hoje, impondo gosto, gestos e adulando consumidores para que comam sem refletir as coisas oferecidas. Contudo, por algum fenômeno desconhecidos deixaram passar também pessoas efetivamente criativas e de espirito livre como Milton Nascimento, Elza Soares, Lecy Brandão, Waltel Branco, Moacir Santos e outres tantes. A indústria da música sofreu um baque há vinte anos atrás com surgimento das trocas horizontais de conteúdos musicais na rede.
Mas, com o sistema mundial de streaming acabou com festa, novamente verticalizou quase tudo, isso não foi totalmente suplantado, mas sofre a pressão. Hoje, o direcionamento feito pelo sistema de algoritmo é bem eficiente, Ou seja, parecer não haver vida musical além daquela indicada pelas pelas play list dos selos. Então sigamos dentro, no entanto à margem.
O que pode nos adiantar sobre o seu próximo projeto, previsto para março?
Pretendo lancar tres parcerias com Paulo Tó, Lincoln e Amailton Magno, que foram resultado das criatividades surgidas no período de pandemia. Também devemos lançar a segunda parte do álbum Ancestres de primavera.
Dentro do seu repertório e musicalidade, o que você considera sendo sua marca registrada?
Tornar cada dia mais evidente os traços de africanidade dos meus sons. Ser fiel a uma noção de mundo advinda das áfricas e de experiências da afro-diáspora. Plasmar nas musicalidades autorais esses fundamentos coletivos de busca do bem viver, da alegria, humanidade ampla e da justiça.