Alma interestelar
Xenia França lança vinil de "Em Nome da Estrela". Entre viagens pelo Brasil, ela conversou conosco sobre música, afetos e experimentações
Era início de 2020 e a cantora Xenia França estava com a agenda disputada. Viajava para se apresentar pelo país e os convites para tocar lá fora estavam chegando. Naquele momento, sentiu algo fora da frequência, a intuição de uma energia estranha pairando no ar. Xênia sentiu que tudo que precisava era de uma pausa para alguns dias de descanso.
Eram apenas alguns dias, mas então veio a pandemia e a necessidade de isolamento social. Assim como em tudo o que faz, a cantora baiana buscou encarar o período positivamente, como um comando do universo para um descanso planetário. As semanas de isolamento viraram meses e ela, como muitos, se viu diante da necessidade de se cuidar mental, física e espiritualmente. Foi então que pegou fôlego e se jogou em um mergulho para dentro das profundezas do seu ser.
Nessa busca pela cura para suas dores nasceu Em Nome da Estrela, seu segundo disco solo, com toques mais experimentais do que seu álbum de estreia, Xenia, que lhe rendeu duas indicações ao Grammy Latino de 2018, uma pela música “Pra que me chamas?”, e outra na categoria de melhor álbum pop contemporâneo.
No novo disco Em Nome da Estrela, Xenia autoafirma sua identidade musical enquanto desconstrói ritmos tradicionais e une-os a sintetizadores, arranjos de cordas e harmonias sofisticadas com referências que vão do jazz ao R&B, criando uma atmosfera deslumbrante para sua linda voz. As doze faixas misturam composições autorais e flertes com grandes nomes da música popular brasileira, com releituras das canções “Magia”, de Djavan, e “Futurível”, de Gilberto Gil, poetas que ela considera “faraós” da nossa música.
A agenda de Xenia está mais uma vez agitada. Na última segunda-feira, 12, ela realizou uma noite de autógrafos e conversas em São Paulo, aproveitando a ocasião para lançar uma versão em vinil de Em Nome da Estrela. No dia 13, fez show em Belo Horizonte e agora volta para a capital paulista, para uma apresentação no Centro Cultural São Paulo, na quinta, 15. Entre pontes aéreas e portais energéticos, ela conversou conosco sobre o novo álbum, processo criativo, dores e cura, mas sobretudo sobre música, o grande dom de que ela tem nessa e em outras dimensões.
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Você lançou recentemente seu segundo álbum solo, Em Nome da Estrela, produzido durante a pandemia. Conte como foi fazer uma obra nesses dias tão incertos. Quais foram as dificuldades de fazer um trabalho nesse período e o que o processo trouxe de positivo para a obra?
Foi uma experiência desafiadora para mim. A criação exige uma imersão em todas as dimensões do fazer artístico e do artista em si. Precisei entender de onde viriam os motivos pra fazer Em Nome da Estrela, quais assuntos e temas criariam a unidade conforme a minha visão de mundo e o que eu queria dizer. Apesar de estar muito abalada emocionalmente naquele momento, o que estava sentindo foi necessário pra eu me olhar. Usei o tempo pra lapidar o meu cristal e fazer daquela experiência matéria prima para esse trabalho.
Antes e durante o processo do disco, precisei cuidar muito de mim, dos meus sentimentos, do meu espírito, da minha cabeça, para encontrar motivação e energia para realizá-lo. Então o catalisador para essa materialização veio das imersões de cura. Agora com ele em mãos, em vinil, tenho a sensação de vitória, porque em alguns momentos eu achei que não ia conseguir entregar. Um disco se faz das viagens que você faz, de longas conversas com amigos e das experiências de vida, mas naquele momento eu não estava acessando nada disso. Era eu comigo mesma e a minha imaginação. Esse disco é reflexo dessa conversa pessoal, de conseguir mergulhar nas questões mais profundas do meu ser. Dessa autointimidade e autoacolhimento.
Você regravou “Magia” e “Futurível”, consideradas composições raras por terem sido gravadas apenas uma vez seus criadores. Qual sua relação com a obra de Djavan e Gil, e como chegou a essas escolhas?
Gil e Djavan são artistas que tenho como bússolas da minha vida, da minha pesquisa como artista e também de fã. Eu os tenho como faraós da música brasileira. Assim como no meu primeiro disco eu homenageei Chico César, Antônio Carlos e Jocafi e Tiganá, fiz questão de dar continuidade a essa reverência como um jeito de mostrar minha pesquisa musical e também ovacionar e dizer do meu amor e minha devoção a esses artistas.
“Magia” e “Futurível” foram escolhidas porque sempre amei essas músicas e também porque fazem sentido dentro da construção do imaginário do disco, que fala sobre tecnologias humanas, a capacidade que temos de criar a nossa própria realidade com os nossos poderes, trazendo à tona uma verdade antiga, de uma ancestralidade poderosa, que vem de antes do corpo e que criou tudo o que existe e que trouxe a gente até aqui. Gil e Djavan como dispositivos dessa experiência tecnológica são instrumentos que iluminam nossos caminhos.
“A criação exige uma imersão em todas as dimensões do fazer artístico e do artista em si. Precisei entender de onde viriam os motivos pra fazer ‘Em Nome da Estrela’, quais assuntos e temas criariam a unidade conforme a minha visão de mundo e o que eu queria dizer”
Xênia França
Você é uma artista que tem uma facilidade em transitar também no campo visual e da moda. Quão importante são esses aspectos para o crescimento da sua carreira, e você vê algumas possibilidades de expansão dos seus trabalhos?
Acredito que ao longo da história a música sempre foi apoiada por outras linguagens artísticas. Na maneira que aprendi a fazer e naquela que me interessa, a ideia é que a música ganhe mesmo outras dimensões. No meu primeiro trabalho, a estética do disco em si já foi um grande destaque. Escolhi deixar as músicas ganharem vida por um ano, algo que parece meio antimercado, fazer o disco e não lançar nada audiovisual. Gostei muito da receptividade do público, de só receber o álbum e ter aquele tempo de absorver a obra. Só um ano depois eu lancei o clipe de “Pra que me chamas?”, que abriu um grande portal pro disco como um todo.
Para mim é isso, cinema traz uma nova dimensão pra um trabalho musical. É capaz de dizer coisas que o disco não disse, de criar um imaginário, de contar histórias. Dentro do trabalho de cinema vão ter essas camadas de moda, fotografia, ou seja, dentro de uma linguagem só, conseguimos desdobrar outras linguagens. E eu tive muita sorte até agora de trabalhar sempre com grandes mentes, grandes profissionais e grandes artistas. O que além de sorte, é para onde eu estou olhando, é o que eu acredito. Minha busca é dar a mão a essas pessoas unindo forças pra ampliar a noção do belo. Me dá muito prazer me colocar no mundo como a própria obra de arte. Mas os caminhos que busco para fazer isso é uma coisa bem pessoal. Os meus discos são criados de forma bastante hermética, fico muito concentrada para que a coisa saia o mais original e pessoal quanto possível.
Suas músicas são bastante puxadas pro r’n’b, com beats fáceis e gostosos. Você já pensou em se aproximar mais da música eletrônica, talvez com discos de remixes ou até mesmo produções originais.
A pesquisa do meu trabalho se debruça sobre um estudo de linguagens e ritmos tradicionais. A maneira de fazer a desconstrução desses ritmos tradicionais é mistura-los com beats, sintetizadores e conversas harmônicas. Sonoramente pode parecer fácil, o que é muito bom, mas na prática, na hora de montar os shows, a gente sempre fica quebrando a cabeça para encontrar um caminho para executar as coisas complexas que criamos. Então, o meu trabalho tem uma necessidade de criar atmosferas rítmicas ricas que têm muita influência desde o maestro Letieres Leite, da Orkestra Rumpilezz, até de Michael Jackson, que criou aquelas camadas incríveis para a música pop.
Enfim, são muitas referências e quando me proponho a fazer o meu trabalho ele não faz referência a artistas do momento. São setas que vêm de muito longe. Por outro lado, para mim música é música e não estou fechada a nenhuma experiência musical. Acredito que no desdobramento da minha carreira ainda vou experimentar muitas coisas. Já estou muito aberta a experimentação, a linguagens que fazem referência ao jazz, ao r’n’b e à própria MPB. Eu faço a música que eu gosto e me atravessa.
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Desde o lançamento de Xenia, seu primeiro álbum solo, você é muito recebida pela crítica e pela audiência internacional. Agora, com Em Nome da Estrela, não está sendo diferente. Você sente que é uma artista com linguagem global, tem planos para se lançar intencionalmente numa carreira internacional?
Não sei dizer porque os meus trabalhos chamam a atenção da crítica fora, mas talvez tenha a ver com uma disponibilidade que eu tenho de deixar a música ser o que ela precisa ser. Meu primeiro disco foi uma necessidade de autoexpressão, de provar para mim mesma que eu era capaz de gravar um trabalho próprio, autoral, com minha linguagem. Tendo vindo de outros trabalhos, mas principalmente de um grupo grande que tinha uma identidade muito forte como foi o Aláfia, se tornou importante pra mim que eu voasse com minha próprias asas. Os desdobramentos do meu primeiro disco me surpreenderam muito e continuam me surpreendendo, porque mesmo com o disco novo ele segue me rendendo frutos e fico muito feliz com isso. Enfrentei o desafio de não cair na armadilha de querer emular o primeiro ou criar uma fórmula. É auto referente, porque me tornei minha própria referência. Poder criar com meus parceiros Pipo Pegoraro e Lourenço Rebetez, que são com quem eu divido a direção musical dos dois discos, é como brincar de videogame.
Desde 2018, com o primeiro disco, comecei minha jornada internacional, participando de shows e programas nos EUA, Berlim, Colômbia e Canadá. E esse novo disco tem chamado a atenção dos críticos internacionais até mais que o anterior. O interesse de decupagem da crítica especializada em falar sobre o disco, fazer a leitura musical e estética, a tentativa de tentar imaginar por que caminhos eu estava passando e pensando para criar o disco, apontam vários horizontes internacionais, o que me interessa muito, obviamente, porque o desejo da música é ir, é criar realidades e possibilidades. Eu não faço uma música que esteja apenas ligada a um contexto ou a uma geografia. Tem muita abertura para o virtuosismo no meu trabalho, para uma linguagem mais instrumental, e eu percebo que tanto o publico quanto a crítica internacional gostam muito disso. Portanto não é uma surpresa que os meus trabalhos estejam batendo na porta das pessoas fora. Esse trabalho é uma continuidade do primeiro, autoafirmativo, o desejo de sempre criar coisas novas, de criar desdobramentos pra minha própria linguagem e a forma que eu tenho de pensar música.
“A pesquisa do meu trabalho se debruça sobre um estudo de linguagens e ritmos tradicionais. A maneira de fazer a desconstrução desses ritmos tradicionais é mistura-los com beats, sintetizadores e conversas harmônicas”
Xênia França
Poderia abrir um pouco sobre as dores e as delícias de ser uma artista independente num país como o Brasil?
Realmente é muito desafiador ser artista independente no Brasil, mas quando foi diferente? Estamos vivendo um momento bastante novo, que é o artista lidando com o advento tanto das plataformas de streaming, quanto das plataformas digitais. Estamos vivendo o do it yourself mais do que nunca. Mesmo quando tem um suporte, o artista lida com absolutamente tudo na gerência da própria arte e carreira. A parte delícia é ter 100% de autonomia nas decisões e construções, e ver um trabalho completamente independente ganhar dimensões que para mim são completamente grandiosas. É incrível! Sinto que isso dá muito poder para a música, que tem sua própria força, seu próprio desejo de ir e de ganhar os patamares que quer ganhar. Eu fico muito feliz de ver o meu trabalho independente, sem gravadora ou investidores, quase underground, atingir as pessoas dessa maneira tão preciosa.
Sobre as dores, é isso aí, é Brasil. E eu vou ter que continuar fazendo o que tem que ser feito, criando probabilidades. Se não existirem portas, eu faço essas portas existirem, se não existirem espaços, eu crio esses espaços, com a magia de ser quem eu sou, de fazer o trabalho que eu faço, me aliando com aqueles e aquelas que acreditam na minha música, que querem que a Xenia continue. Eu quero que a Xenia continue fazendo esse trabalho cada vez mais.
Centro Cultural São Paulo – 15 de dezembro, 20h
Grátis. Retirada de ingressos 1 hora antes, na bilheteria
É recomendado o uso de máscara
Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso