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OLÁ,

A fé que dança: o caminho de “Torto Arado” das páginas aos palcos

Em ensaio exclusivo, o dramaturgo Elisio Lopes Jr. escreve sobre o árduo processo de adaptação do romance para o teatro

Por Elisio Lopes Jr.
16 Maio 2025, 07h00
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 (Amanda Jordão/divulgação)
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Como escritor, eu respeito muito as palavras. Quando elas se juntam e formam frases, sinto que tem algo por trás disso. Tem uma intenção na junção, que se forma como um Big Bang, e isso sempre vai além do que foi pensado pelo autor, vai o escondido, o traiçoeiro, o divino. A frase é o pedaço do pensamento, com um taco de sonho e um “q” de desejo. Quando nasce a frase, ela nos provoca entusiasmo! É assim que eu vejo a escrita, e o ofício do autor. Nosso trabalho é escrever, parir frases que juntas nos toquem em algum lugar. Digo isso, para começar a falar do desafio que é para um autor, tocar na obra de um outro autor, transformá-la numa outra escrita, e depois levá-la ao palco num outro formato artístico, não imaginado pelo autor original. Eu fiz isso com um dos livros mais lidos do Brasil, Torto Arado, escrito com delicadeza e muita identidade pelo meu conterrâneo Itamar Vieira Jr., e que em 2024 se transformou num musical que leva o mesmo título da obra original.

Quando eu fui convidado para assumir a direção artística do projeto cultural que tinha como proposta realizar um musical teatral a partir do livro Torto Arado, eu pensei: – De quem foi essa ideia maluca? Eu jamais teria essa ideia! Eu tinha lido esse livro durante a pandemia e nas minhas memórias estavam acumulados os corpos mortos nessa narrativa, as dores, a aspereza dos sentimentos, a feiura da realidade daqueles “personagens”. Como fazer para que aquelas figuras saíssem pelo palco cantarolando lindas canções e dançando coreografias mimosas, numa narrativa embalada em figurinos cintilantes e botas de cano longo? Claro que estou parindo frases estapafúrdias, mas é apenas para ilustrar o quão perdido eu me vi diante da proposta que me foi feita pela produtora do espetáculo, Fernanda Bezerra (Maré Produções). Eu pedi uns dias para pensar. Peguei o livro e fui para perto do mar. Ali comecei a reler os capítulos escritos por Itamar, e as frases foram saltando das páginas, voluntariosas, cheias de imagens. Será que é possível fazer um musical com essa cara? Com duas protagonistas que cortam as próprias línguas? Com tantas mortes dolorosas? Será que dá pra contar essa história e no final ainda desejar ser feliz? Essas perguntas começaram a me acompanhar até o fim da releitura. E mesmo ao fechar o livro eu ainda não estava convencido.

Como dizem os meus mais velhos: “Basta a língua parar, pra ouvir o coração!” Torto Arado é uma obra que traz a voz do povo preto e do povo indígena, do interior da Bahia. Um povo que tem muito pouco da vida, mas que se sustenta com base numa fé gigante. E que fé é essa? A fé que dança! As religiões de matriz africana e indígena cultuam seus deuses, suas entidades e suas crenças através do canto e da dança. Itamar traz com força no livro, o Jarê, uma religião característica da Chapada Velha, região do interior da Bahia onde acontece a história do livro. Quem sou eu pra afirmar que não é possível fazer um musical Torto? Quem sou eu para não permitir que esse Arado seja regado com arte? Sim! É possível contar essa história a partir dos seus donos, com a voz, a dança, o canto, e a beleza de quem somos de verdade. Podemos fazer musical brasileiro, mesmo que o nosso tempo seja tão voraz no consumo e na valorização de quem vem de outras culturas. A resposta tinha que ser: Sim! Vamos fazer esse musical. Viva a fé que dança. Ela é o caminho.

Passada a euforia veio a ficção, literalmente. O espetáculo tinha estreia prevista para setembro, estávamos em março, e não tinha nenhuma cena escrita, nada concreto sobre a adaptação cênica do livro. Eu me juntei com Aldri Anunciação, que era o diretor original desse projeto, e com Fábio Espírito Santo, que seria o adaptador da versão de Aldri, e disse: Vamos começar do começo! Que história será contada? O livro é tão rico que existem diversos caminhos para fazer essa adaptação. Mas na minha cabeça só tinha um: ancestralidade. Eu queria contar a história da avó, Donana, e como a sua vida marcaria o futuro das suas netas: Bibiana e Belonísia. Aldri e Espírito se assustaram um pouco com o recorte que eu estava propondo, mas mergulharam de mãos dadas. Fizemos Torto Arado se transformar numa saga feminina, criamos uma prosódia para os personagens e trouxemos para dentro da escrita, o compositor. Se o autor das canções não estivesse criando a música junto com o texto, esse resultado não seria possível. Por isso eu considero Jarbas Bittencourt o quarto autor desse texto, pois as canções são todas autorais e ajudam demasiadamente a contar essa história. Fomos pensando juntos, eu e Jarbas, em cada ritmo, cada solo, quem canta, o que dizer, porque cantar. E juntos fomos parindo esse novo Torto Arado. Foi ficando claro para mim que em todas as etapas desse projeto seria necessária uma boa dose de desrespeito ao autor do livro, de subversão dos seus sonhos, e essa transposição das páginas para outros formatos é assustadora. Seja para o palco ou para a tela, não é viável criar sem subverter, sem o caos.

A escrita foi uma dinâmica muito parecida com uma sala de roteiro de audiovisual. Eu aproveitei que era também o diretor do espetáculo e fiz uma escaleta, uma estrutura numerada das cenas, definindo o que deveria acontecer em cada uma delas. Depois distribuía para Aldri e Espírito, e para Jarbas, algumas das cenas. Eles criavam os diálogos e as canções, e eu dava a forma final, juntando a criação deles, com o que eu acreditava que seria necessário para cada cena. O texto nasceu. Agora faltava apenas todo o resto: o cenário, os figurinos, a luz, e as vozes que contariam, dançariam, e cantariam essa história. Fizemos uma audição nacional, sediada na Bahia, com mais de 500 artistas inscritos. Selecionamos 14 atores, convidei duas atrizes, e fechamos o elenco. Os ensaios foram revelando mais e mais necessidades de adaptação. O texto que finalizamos com 100 páginas, na sala de ensaio, se transformou em 70. Trinta laudas voaram para o esquecimento durante a construção das cenas. E é assim, a criação esconde o divino. Lembram-se do início do nosso papo: “Quando nasce a frase precisa, ela nos provoca entusiasmo!”

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Quando escutamos ou lemos a palavra “entusiasmo”, ela rabisca um sorriso em nosso rosto, uma certa vontade de fazer coisas, uma alegria qualquer. Curioso que sou com palavras, um dia fui entender a sua origem semântica. Entusiasmo vem do grego in + theos, que literalmente significa “em Deus”, é a inspiração ou possessão por uma entidade divina, ou pela presença de Deus. O escritor, portanto, é o cavalo, ele serve à entidade maior da sua fé, para levar ao mundo suas frases. Tudo está conectado na fé, e levar Torto Arado para o palco é professar a minha fé maior que é em mim, no Deus que eu sou, que nasce da minha ancestralidade, que se compõe das memórias que trago no corpo do que vivi e do que minha mãe, minha avó, minha bisa viveram. São marcas profundas, que desenham as nossas escolhas e sonhos. O musical, que tive a honra de coordenar a adaptação do texto e dirigir, dignifica as minhas antepassadas, faz a “missa” de corpo presente e quente, no palco. É a cena preta, a gira, a minha pele no protagonismo da cena. E isso é pra festejar, sim!

Infelizmente, o “Era uma vez…” que estamos acostumados, viveu muitos anos na boca branca e cheia de dentes dos donos das narrativas. E nessas tramas sobravam poucos papéis para minha vó, para mim, para as minhas filhas. Muitas vezes os personagens parecidos comigo, simplesmente não tinham cenas para mostrar sua humanidade, não sentiam nada. Só diziam: “Sim, senhora!”, “Não me bata, senhor!” Em Torto Arado é diferente. Mesmo contando uma história tão dura, ainda tão contaminada dessas dores históricas, eu consigo vibrar e me emocionar com as cenas. Quando o coro canta “Corre preta velha…” e eu vejo a interpretação atordoada e elegante de Lilian Valeska como Donana, perambulando pelo palco, aquilo me emociona. Quando Larissa Luz, a nossa Bibiana, esmurra o chão pra descarregar uma fúria que não cabe mais em palavras, aquilo me bate no peito. Quando Belonísia, na pele de Bárbara Sut, sem língua, oprimida e angustiada, dá um grito de: “Eu falo!” na ponta do palco, na cara do público, isso é libertar fantasmas. Esse grito afirma o direito à voz, é o grito de muitos de nós. E só a arte pode libertar toda a lógica da vida real, para que a gente consiga ouvir a voz que ecoa na mente de uma mulher negra e sem língua. É isso que tem de divino na arte. É por isso que se você ler esse texto, vá ao teatro.

Esse trabalho é coletivo, é a mão da nossa preparadora de elenco Ana Paula Bouzas, da música de Jarbas Bitencourt, da coreografia de Zebrinha, da dedicação dos diretores assistentes Ricardo Gamba e Ridson Reis, é a cenografia, o figurino, é a luz, arte é isso, mãos que se ajudam. O resto dessa história deve ser contada pelo mundo. E o espetáculo nasceu sob o olhar mágico do público. Desde a estreia do nosso musical tivemos todas as sessões lotadas, fizemos duas temporadas em Salvador e uma em São Paulo, e fechamos o ano de 2024 com mais de 21 mil expectadores em 50 sessões. Uma das coisas mais bonitas dessa experiência é que nós imaginávamos que o público do musical seria em sua maioria de leitores do livro, mas não foi. Tivemos uma grande parcela de público que até já tinha ouvido falar do livro, mas que não leu. E que ao final do espetáculo se dizia provocada a comprar e ler o livro. É o caminho de volta às páginas. São os caminhos pelos quais somos conduzidos, como cavalos que somos. Em 2025 Torto Arado seguirá nas livrarias e nos palcos, não vai ser difícil nos encontrar. Circularemos por seis capitais brasileiras, com o patrocínio renovado, e o apoio da Lei Rouanet do Ministério da Cultura. Temos cultura! Então: Inté, no vento!  Pois segundo Itamar: “Quando o vento sopra é a própria viração!”.

Elisio Lopes Jr. é dramaturgo, roteirista e diretor artístico. O espetáculo “Torto Arado – O Musical” estreia 17 de maio de 2025, no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro. 

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