Tarsila do Amaral por Claudia Raia
Em entrevista à Bravo!, Claudia Raia falou sobre o desafio de viver a pintora modernista em "Tarsila, a Brasileira", musical em cartaz no Teatro Santander
Claudia Raia é reconhecida por sua energia inesgotável, voz marcante e presença capaz de preencher todos os cantos de uma sala ou teatro. Essa vivacidade, comparada por Tarsilinha do Amaral à de outra grande artista, Tarsila do Amaral, desperta a curiosidade sobre a possibilidade da atriz representá-la no palco.
Em 25 de janeiro, no aniversário de São Paulo, Raia estreou no Teatro Santander no musical brasileiro Tarsila, a Brasileira, interpretando a pintora e precursora do Modernismo, com texto e letras de Anna Toledo e José Possi Neto. Em quase três horas de espetáculo, a atriz incorpora diversos aspectos da vida da pintora, desde o encontro com os Modernistas após a Semana de Arte de 22 até os momentos dramáticos antes de sua morte. Além de atuar, Claudia é também produtora da peça. A Raia Produções foi responsável por idealizar o espetáculo.
Apesar de ter dado à luz seu terceiro filho, Luca, há menos de um ano, durante a menopausa, Claudia Raia emendou os ensaios para o musical, contracenando com seu marido, Jarbas Homem de Mello, que interpreta Oswald de Andrade.
A trama aborda o trágico desfecho do casamento de Tarsila e Oswald, marcado por traições do escritor com Patrícia Galvão, a Pagu, com quem se casou em 1930. A narrativa revela as dificuldades enfrentadas por Tarsila, inicialmente parte da elite cafeeira em Capivari, com uma vida marcada por luxo e excessos. Após o primeiro casamento e a vivência em uma fazenda da família, ela parte para Paris, iniciando sua trajetória artística. Em 1929, a família perde tudo. E em 1932 a artista chega até mesmo a ser presa por acusação de comunismo, momento em que ela começa a pintar suas obras sociais, como “Operários” (1933).
“Desde o começo do trabalho de pesquisa, percebi que Tarsila tinha sido colocada num pedestal, como se ela não fosse humana como nós. Quis que esse espetáculo subvertesse isso, mostrando que ela, por trás desse lugar de admiração absoluta em que foi colocada, era uma mulher como tantas outras, que sofreu muito, amou muito, que era intensa, corajosa, obstinada e extremamente talentosa e sensível”, comentou a atriz em conversa com Bravo!.
O musical também destaca momentos emblemáticos, como a apresentação da obra “Abaporu” (1928) como um presente ao marido. Atualmente, a pintura está localizada no acervo do Museu de Arte Latino-Americana (Malba), em Buenos Aires, na Argentina.
Em entrevista à Bravo!, Claudia Raia comentou falou sobre sua preparação para dar vida a Tarsila do Amaral no musical, entregou os desafios de colocar este projeto de pé, falou sobre o adiamento do musical e avaliou o legado da artista. Confira a íntegra da entrevista abaixo:
Qual tem sido o maior desafio no preparo para interpretar Tarsila nos palcos, considerando a importância histórica e artística da figura que você está representando?
O primeiro desafio foi exatamente esse que você colocou: como interpretar esse ícone da Brasil? Como traduzir a importância de uma das maiores artistas brasileiras que nós temos e contar com honestidade a história dela, uma história que as pessoas ainda não tinham acesso? Para cumprir bem essa missão, tivemos muito apoio da família. A ideia, inclusive, veio da família. Ainda durante a pandemia, Tarsilinha, sobrinha-neta de Tarsila do Amaral, me procurou falando da ideia do espetáculo e que só faria se eu produzisse e interpretasse Tarsila, porque ela via em mim a mesma energia e força da tia-avó dela. Amor, quando você ouve isso só dá para dizer: “Sim, claro. Quando começamos?” (risos) A família foi muito generosa conosco em todo processo. A partir daí, desde outubro estava com o desafio de achar essa mulher no meu corpo: o tom de voz, o gestual, o olhar, o movimento do corpo… Esse foi um processo lento de construção. Porque ela é completamente diferente de mim. Tive que me desconstruir para deixar Tarsila tomar conta. Não é fácil, mas é um trabalho de composição que eu, como atriz, adoro fazer.
Como surgiu a sua vontade de participar deste musical sobre uma das mais importantes figuras do Modernismo brasileiro, e qual a importância que você atribui a projetos que exploram a história cultural do Brasil?
Desde que recebi o convite, eu aceitei. Ter a chance de contar uma história como essa é ganhar um bilhete de loteria premiado. Não tem como recusar. Para mim, como mulher e artista brasileira, é ainda mais sedutor contar esta história. Estamos aqui falando de uma mulher que na primeira metade dos anos de 1900 já pensava e agia com uma mentalidade muito progressista. Ela já estava vivendo no nosso tempo (risos). Casou e se separou, não se conformava com os abusos que sofria e conseguiu encontrar apoio para sair de relações abusivas, viveu um trisal numa época em que isso não era nem cogitado. Eu fico muito impressionada com a resiliência dela. Tarsila sofreu muitos reveses na vida, sendo que os maiores foram a morte da filha e da neta. Indo além da história pessoal dessa mulher, temos o legado dela para a cultura brasileira, que é inestimável. O modernismo foi o primeiro movimento cultural que apostou num fazer brasileiro. Que olhou verdadeiramente para o Brasil e quis falar sobre essa terra, sobre as questões sociais do país… Falar sobre a importância da arte brasileira ainda é assunto hoje, mais de 100 anos depois da Semana de Arte Moderna de 22. Ainda precisamos afirmar que cultura e arte são importantes, são ferramentas de transformação social e devem ser levadas a sério. A cultura brasileira é riquíssima e muito plural. Somos um país continental e, portanto, nada mais natural do que termos manifestações artísticas diversas. Somos a terra do Carnaval, e também somos a terra do samba, do funk, da bossa nova, das novelas, do cinema, do São João, do Bumba Meu Boi. Somos a terra dos musicais! Temos muito a mostrar. Fazer um espetáculo como este é falar também da importância da cultura brasileira e de como ela segue viva, pulsante, vívida!
Pode compartilhar um pouco sobre a pesquisa realizada para entender a história de Tarsila do Amaral e como foi o processo de escolha do recorte utilizado para retratar a vida da artista no musical?
Tivemos muito apoio da família de Tarsila e, por isso, tivemos acesso a materiais inéditos, como as cartas que ela trocava com Chico Xavier. Para mim, é muito nítido que ela só conseguiu se reerguer porque tinha as mães dele amparando ela. A escolha do recorte foi a Semana de Arte Moderna de 22, que é um período emblemático da história do Brasil até pouco depois da morte da neta. Esses foram momentos muito decisivos da vida dela.
Como foi o processo para montá-la? Houve necessidade de adiá-la?
A princípio, estrearíamos em 2022, em comemoração à Semana de Arte Moderna de 22. Porém, houve um atraso em relação à documentação e questões burocráticas. No mesmo ano, engravidei, e precisamos adiar novamente. Queríamos estrear em uma data emblemática e escolhemos, então, o aniversário de São Paulo, cidade que recebeu a Semana de Arte Moderna.
Quando você entrou em contato com a obra dela pela primeira vez?
Não lembro quando foi a primeira vez, mas provavelmente foi na escola, quando estudávamos sobre os movimentos culturais brasileiros. Mas lembro a sensação de ver o Abaporu pessoalmente pela primeira vez. É uma obra muito poderosa, me deixou meio atônita. Porque você olha e não sabe bem o que é com a dismorfia do corpo, as cores bem vivas… E aos poucos aquelas informações vão fazendo sentido e dando lugar à compreensão da obra. Dá para entender o motivo de Oswald de Andrade ter escolhido o Abaporu para ser um símbolo do Movimento Antropofágico. Lembro também da emoção que foi ver a exposição sobre ela no MOMA, em Nova York, quando eu já sabia que a interpretaria no teatro. Olhei para a exposição de outro lugar, pensando também em como faria para apresentar aquilo tudo no espetáculo (risos). Como levaria as obras para a cena.
Além dos aspectos artísticos, quais foram os desafios físicos enfrentados durante a preparação para o papel, especialmente considerando que você deu à luz ao Luca há menos de um ano?
Eu estava voltando do pós-parto e sabia que seria um processo mais lento para meu corpo. No começo, fiquei preocupada em como lidaria com isso. Mas depois de um tempo de reflexão, me tranquilizei e pensei: “Meu corpo nunca me deixou na mão. Agora preciso ter paciência com ele e a convicção de ele vai estar na melhor forma que ele puder para a estreia”. Músculo tem memória e quando, em outubro, comecei a estimular meu corpo diariamente nos ensaios, ele foi se adaptando à forma que era a melhor para o papel. Tive uma preparação muito próxima como o Alonso Barros, nosso coreógrafo e diretor de movimento, porque para mim tinha mais um desafio, além de atuar, cantar e dançar ao mesmo tempo: encontrar o corpo de Tarsila no meu corpo. Ela era mais baixa, tinha o corpo mais para dentro, por ser uma pessoa mais introspectiva, os movimentos eram diferentes. Com a preparação, tudo foi fluindo e consegui chegar aonde queria.
Existe algum aspecto ou qualidade específica de Tarsila do Amaral que você mais admira e que procurou destacar em sua interpretação?
O que a gente quer destacar no mundial é a mulher de carne e osso, o lado B da Tarsila. Ela sempre foi uma mulher mais reservada e, por isso, não sabemos tanto da vida dela. Desde o começo do trabalho de pesquisa, percebi que Tarsila tinha sido colocada num pedestal, como se ela não fosse humana como nós. Quis que esse espetáculo subvertesse isso, mostrando que ela, por trás desse lugar de admiração absoluta em que foi colocada, era uma mulher como tantas outras, que sofreu muito, amou muito, que era intensa, corajosa, obstinada e extremamente talentosa e sensível. O que eu mais quero destacar com o meu trabalho é a dimensão humana de Tarsila do Amaral.
Nos últimos anos, temos observado um aumento na produção de musicais brasileiros, deixando de lado narrativas estrangeiras. Qual é a sua opinião sobre essa mudança e o que você acredita que ela reflete sobre o cenário teatral brasileiro?
Para mim, essa é uma evolução natural do mercado. Hoje temos autores e músicos específicos de teatro musical, por exemplo. É bem diferente você escrever um texto teatral e um texto de teatro musical. Isso requer uma habilidade específica. Temos mais atores trabalhando em teatro musical, o que permite ter vários espetáculos desse gênero ao mesmo tempo. Com o mercado mais profissionalizado, é natural que passemos a contar mais histórias 100% brasileiras, como “Tarsila, A Brasileira” e foi o caso “Conserto para Dois”, um espetáculo inédito nacional em que eu e Jarbas interpretávamos cerca de cinco personagens cada um. Não acho que estamos deixando de lado narrativas estrangeiras, e nem acho que precisamos deixar também. Ano passado, por exemplo, Jarbas atuou na montagem de “Uma Linda Mulher”, que foi um grande sucesso. As coisas podem coexistir, e que bom que é assim. Temos público para todos os gostos, para todos os musicais. O importante para mim é ver esse setor aquecido, com muitas pessoas empregadas. Acho que daqui em diante, a tendência será vermos cada vez mais musicais 100% brasileiros nos palcos, justamente pelo amadurecimento desse mercado no país. Era esse meu sonho e minha aposta desde a década de 90, quando comecei a produzir meus musicais. Realmente acredito que este é um gênero muito brasileiro. O retorno que recebemos do público prova que isso é verdade.
Teatro Santander
Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041, São Paulo
Qui. a dom. às 20h. Até 18 de fevereiro
De R$ 25 a R$ 300