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A arte de Daniela Thomas

Cenógrafa está entre as grandes da história do teatro brasileiro

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 12 abr 2023, 17h51 - Publicado em 10 abr 2023, 10h56

Quando era criança, Daniela Thomas estava acostumada a ver a mesa de jantar de casa se transformar numa grande tábua de criação. As três crianças da casa, Daniela, Antonio e Fabrizia, se colocavam em volta daquela mesa de ideias e observavam atentos o pai em ação, ninguém menos do que Ziraldo, um dos maiores cartunistas do Brasil.

Ao lembrar da infância, Daniela ganha convicção de que aqueles primeiros anos foram elementares para selar o destino dos três filhos. “São três artistas, cada um na sua área”, ela conta do outro lado da tela do Zoom. “Nenhum outro tipo de conhecimento me despertava tanto interesse quando a ideia de trabalhar com arte.”

Embora cada um tenha seguido uma direção e linguagem específica, uma paixão união todos ali: o cinema. “Me lembro do meu aniversário de 12 anos de fazer uma festa com cinema projetado. Meu pai adorava filmes norte-americanos, já minha mãe era fascinada pelo cinema europeu. Ela me levava para assistir filmes de Bertolucci, Antonini, recorda.

The Circle Walked Casually.
Exposição “A CIRCLE WALKED CASUALLY” curadoria de Victoria Northoorn. Espaço DEUTSCHE BANK em Berlim, 2013. (Daniela Thomas/arquivo)

Primeira parada: Londres

Na ocasião em que conversamos, Daniela, hoje diretora e cenógrafa, havia acabado de estrear em São Paulo o espetáculo Molly Bloom, peça que dirigiu e concebeu a cenografia. Com ele foi indicada ao Prêmio Shell por melhor cenografia. Durante a sua carreira, que celebra mais de quatro décadas, ela levou para casa seis Prêmios Shell por cenografia. O primeiro trabalho de seu portfólio foi a concepção de All Strange Away, texto de Samuel Beckett, no Teatro La MaMa, em Nova York. Já o primeiro trabalho vencedor do Shell foi com a peça Trilogia Kafka, em 1988.

O ingresso na seara teatral aconteceu, mas não sem um desvio no percurso e alguns apuros. Daniela viveu sua adolescência em plena ditadura militar. Em uma casa onde política era um assunto de extrema importância, suas escolhas foram guiadas pelo cenário que transcorria naquele momento. “O país estava extremamente polarizado nos anos 1970, durante a ditadura. Meu pai foi preso várias vezes. Então fui fazer história em vez de fazer, sei lá, Design, Artes Plásticas, qualquer outra coisa do universo artístico. Eu achava que tudo passava por política, não existia vida fora da política naquela época.”

“Nenhum outro tipo de conhecimento me despertava tanto interesse quanto a ideia de trabalhar com arte”

Daniela Thomas
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Retrato de Daniela Thomas. Foto: Eudes de Santana
Retrato de Daniela Thomas. (Eudes de Santana/arquivo)

Pouco mais de um ano, enquanto descobria o mundo acadêmico, por influência do pai, resolveu passar um tempo fora do país, ainda sem previsão de um retorno à democracia. Foi para Inglaterra, com objetivo inicial de ficar um breve período estudando inglês. A curta estadia se alongou por 10 anos: “Eu abandonei a escola no mesmo dia em que cheguei. Percebi que a política era um aspecto do mundo e retornei aos desejos mais antigos, fui atrás de estudar cinema, mesmo tendo quase nada de dinheiro. Vivia fazendo bicos, fazendo desenhos em lojas de vinho, trabalhando em bilheterias de cinema.”

Mesmo se desdobrando em muitos trabalhos, a conta não fechava no final do mês. Continuar os estudos se tornou inviável. Mas um passo do acaso resgatou a artista, dando mais uma chance para que ela se embrenhasse pelas artes. “O Gerald [Thomas] me convidou para transformar um objeto que eu tinha desenhado em um cenário. Era uma peça nos anos 80. E o resultado ficou muito bom, fiquei muito feliz com aquele cenário. Daí, o resto é história, quando me dei conta, eu já era cenógrafa e passei a fazer isso o resto da vida.”

Not About Love
NÃO SOBRE O AMOR. Dir. Felipe Hirsch. Em cena, Leonardo Medeiros. Teatro do CCBB São Paulo, 2008. Foto Carol Sachs (Daniela Thomas/arquivo)

Um monstro: o alter ego

A cenografia foi a maneira, talvez inédita, que encontrou tanto para se sustentar, quanto para canalizar toda sua energia criativa e disciplina. Com o tempo e experiência, foi intercalando outros trabalhos na direção. Uma das grandes escolas que teve foi o filme Terra Estrangeira, que co-dirigiu ao lado de Walter Salles, em 1994. “Foi com esse trabalho que retomei minha paixão pelo cinema. Foi a realização de um sonho muito antigo”. A parceria com Salles se desdobrou no filme Linha de Passe, de 2008, que teve importante passagem internacional, sendo um dos selecionados do Festival de Cannes. Dos seus trabalhos, a primeira experiência no teatro, ao lado de Gerald Thomas, e a estreia na direção, com Terra Estrangeira, são aquelas que guarda com maior carinho.

Muitos de seus projetos cenográficos são realizados em parceria com o também cenógrafo Felipe Tassara, como é o caso do recente Molly Bloom.

Noite Em Latinoamerica
ANTES QUE A DEFINITIVA NOITE SE ESPALHE EM LATINO AMÉRICA. Dir. Felipe Hirsch. Em cena, Deborah Bloch. Teatro Oi Futuro RJ, 2019 (Daniela Thomas/arquivo)

Como a maioria dos artistas, um dos motores da criação é, justamente, ter que lidar com o seu alter ego, que, por vezes, aparece como um grande monstro, e em outras se torna um importante aliado na criatividade. “Tenho um imenso alter ego crítico dentro de mim e ele trabalha por exclusão. Quando vou fazer um trabalho sobram poucas opções que acho que são factíveis para resolver aquele impasse. Esse alter ego, esse monstro, despreza a grande maioria das ideias. Elas vão sendo desprezadas porque já foram usadas antes ou elas são menores do que a minha ambição com relação àquele trabalho. Então vou trabalhando por exclusão.”

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O programa clássico da TV Cultura, RODA VIVA, na versão que ficou no ar por oito anos.
RODAVIVA (programa de tv), Tv Cultura – São Paulo. De 2011 a 2019. (Daniela Thomas/arquivo)

A jornada é sempre muito dura e desgastante, mas não é do tipo que proporciona apenas sofrimento. Daniela é do tipo de criadora que consegue apreciar o próprio trabalho ao fim do processo. “Geralmente me dá um grande prazer ter solucionado essa difícil equação”, ela explica. “Tanto a direção quanto a cenografia são atividades que você tem que tomar muitas decisões em pouco tempo e todas elas terminam nesse objeto, que é o filme ou cenário, ou espetáculo. No cinema tem um agravante: cada decisão que você tomar vai ficar gravado naquela película, na eternidade da imagem.”

“O Gerald [Thomas] me convidou para transformar um objeto que eu tinha desenhado em um cenário. Era uma peça nos anos 80. E o resultado ficou muito bom, fiquei muito feliz com aquele cenário. Daí, o resto é história, quando me dei conta, eu já era cenógrafa e passei a fazer isso o resto da vida”

Daniela Thomas

Há outra metodologia antes de chegar no ponto de decidir, cortar ou mudar o conceito cenográfico. Ao trabalhar num novo projeto, ela estabelece diversas perguntas a serem respondidas coletivamente. “Qual é o objetivo do projeto? Se tem que ser traduzido em palavras, é profundo? É Raso? É escuro? É alto? É opressivo? Ele traz uma dimensão do cotidiano ou uma dimensão espiritual, transcendental?”, ela questiona. “Há também a relação com a plateia que precisa ser considerada. A plateia deve estar dentro ou fora [do palco]? Tenho que responder a tantas coisas que no final sobram poucas opções de movimentação.”

Muito além da técnica, há também a necessidade de conhecer e estudar a dinâmica de luz e todo tipo de material, estrutural, do arcabouço da cenografia. Algo que adquiriu com o tempo e com dificuldade. Afinal, ela é uma espécie de arquiteta. Ela conta que o aprendizado veio, principalmente, com os técnicos, marceneiros que constroem o cenário.

“Todos os repertórios materiais de qualquer atividade profissional estão disponíveis para você ao toque do seu dedo no celular. Esse mistério com relação aos materiais que vivi é uma coisa do passado. Eu nunca estudei cenografia, eu aprendi com cenotécnicos. Acho que não ter estudado dava a graça no trabalho. É como aquela frase: ‘Sem saber que era impossível, foi lá e fez’.”

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Brasiliana
Coleção Brasiliana ITAU. Espaço Olavo Setubal, Exposição permanente no Itaú Cultural, 2014. (Daniela Thomas/arquivo)

Em Molly Bloom, por exemplo, o tipo de material escolhido para compor a cena define completamente a estética e a linguagem da peça. Num palco italiano, Daniela cobriu a boca de cena, do teto ao chão, com um enorme tecido filó tramado e transparente. A personagem, interpretada por Bete Coelho, ocupa uma cama gigantesca, com a cabeceira virada para a plateia. Essa mesma cabeceira se transforma numa grade, pela qual o marido, Leopold Bloom, pula para entrar em casa.

O aspecto do tecido faz parecer que estamos olhando a imagem de uma televisão antiga, com aqueles chuviscos em preto e branco. A alusão ao cinema é também central, enquanto uma câmera acompanha e amplia os movimentos e expressões dos dois atores em cena. “Aquele é um tecido tramado de forma que tenha uma área com fibras, uma área transparente e um buraco. Então a projeção de luz toca na tela, a luz rebate e a outra parte perfura e passa. Assim, você consegue ver o que está iluminado por trás. Isso foi uma descoberta que fiz assistindo a uma peça em Londres em 78 ou 79. Era um cenário com muitas andares e tinha um pedaço que ele ficava transparente e ficava opaco, ficava transparente ficava o palco. E eu fiquei doida com aquilo.”

“É como aquela frase: ‘Sem saber que era impossível, foi lá e fez’.”

Daniela Thomas

Após tantos anos de trabalho e tanto empenho, Daniela Thomas é reconhecida como um dos maiores nomes da cenografia teatral brasileira. Um tipo de maga do teatro, que facilita o encantamento do público pela história que está sendo contada e permite novas e criativas maneiras de olhar o mundo. “Sempre tive medo, desde pequena, de que talvez eu não servisse para nada. De pensar ‘tomara que eu encontre um lugar em que eu sirva’. Então eu ainda preciso responder a essa criança: conseguimos? Diante de todas as dificuldades, conseguimos realizar algo de valor? Tem uma frase do Philip Glass, que eu adoro, que é ‘Arte é aquilo que não serve para nada’”.

Ela continua: “Mas esse nada para qual ela serve, eu sou adepta dessa igreja. É um nada que me enche, que me inunda.”

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Cerimônia de abertura das olímpiadas do Rio.
CERIMÔNIA DE ABERTURA DAS OLIMPÍADAS RIO 2016. Direção e direção de arte. Maracanã, 2016. (Daniela Thomas/arquivo)

 

 

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