Sagração de Deborah Colker suberverte balé russo com cosmovisão brasileira
Trabalhar com a partitura de Igor Stravinsky era sonho antigo da coreógrafa; Saiba todos os detalhes sobre o processo coreográfico e sobre a turnê pelo país
Há mais de um século, quando “A Sagração da Primavera” estreou em Paris em 1913, a reação do público foi de completo espanto. A obra interpretada pelo bailarino Vaslav Nijinsky (que mais tarde seria reconfigurada por Léonide Massine e novamente por Joffrey Ballet) apresentava subversões cênicas que desafiavam os compassos e a tradição da música e da dança clássica. O que parecia incomodar especialmente era o estilo sonoro repleto de interrupções e assimetrias, dissonâncias, distante de um ritmo e fluxo já consagrado. Igor Stravinsky era apenas um jovem quando compôs a trilha para o balé. A obra enaltecia um novo movimento e confrontava a estética impressionista então predominante. Levaria algumas décadas até que aquela linguagem fosse compreendida como revolucionária e precursora da dança moderna.
Da Rússia para o Brasil, no pós-pandemia, a coreógrafa Deborah Colker, uma das figuras proeminentes da dança contemporânea, vivia um processo atrasado em que apresentaria o espetáculo “Cura” em uma plataforma de streaming. Em um momento de profunda impaciência e parecia sem fim, uma ideia lhe ocorreu: por que não montar sua própria versão de “A Sagração da Primavera”? “Comecei a pensar: ‘Acho que está na hora de eu fazer a sagração, que é um sonho tão antigo, uma missão tão importante para mim”, afirma a dançarina em conversa por telefone.
Deborah possui vasta experiência na dança. Há um valor simbólico, portanto, quando se pensa que há exatamente 30 anos a coreógrafa fundava a companhia que leva o seu nome. A celebração de 3 décadas vem com a bem-vinda a estreia de sua nova peça “Sagração” em São Paulo, que faz curta temporada no Teatro Santander.
Nesse primeiro movimento, Deborah entendeu que era necessário se aprofundar na música de Stravinsky para entender quais eram os caminhos possíveis de adaptação. “Virou meu livro de cabeceira”, ela brinca. Além de coreógrafa, Deborah é também pianista.
“Passei seis meses estudando a versão original de ‘A Sagração da Primavera’, seus 42 minutos, enfrentando a dificuldade de decifrar essa música, porque ela é uma composição rítmica e matemática extremamente complexa. Stravinsky realmente abalou a tradição da composição musical, inaugurando uma era moderna na música.” – Deborah Colker
Com o estudo, logo ela entrou na sala de ensaio com os seus bailarinos para experimentar como aquele referencial ressoava em seus corpos. Desde o início, reconheceu o desejo de abrasileirar a peça. “Sabia que queria trazê-la para o Brasil. Para isso, precisava encontrar uma forma de sintetizar e me relacionar com a floresta brasileira. Então, começamos explorando o bambu em cena. Pensamos nele como um objeto, uma planta, uma extensão do corpo.”
Além do emblema da flora brasileira, vieram outros materiais de estudo: os mitos, os livros e a própria diversidade brasileira, as cosmovisões de culturas milenares dos povos originários. A diretora da companhia contou com apoio do rabino Nilton Bonder na construção da dramaturgia.
“Desde o início, eu queria criar algo primitivo. Fui em busca da ideia de falar sobre a evolução da espécie. Busquei esse corpo primitivo, esse corpo floresta, um corpo que antecede a exploração e colonização do Brasil”
A escolha dramatúrgica da companhia destoa da original. Subverte-a quase inteiramente. Sobra a música de Stravinsky, seu aliado desde o início. Aos instrumentos idealizados pelo compositor, a peça contemporânea acrescenta ritmos brasileiros, como o Boi bumbá, coco, afoxé e o samba. A obra criada no início do século XX, por sua vez, se inspirou no folclore histórico da Rússia. Dividida em 14 cenas, a peça é apresentada como um ritual no qual, ao término, uma comunidade sacrifica uma jovem virgem como oferenda ao deus da primavera em troca de uma terra fértil no ano seguinte.
No espetáculo concebido pelo grupo brasileiro, a narrativa explora uma história muito anterior, iniciando-se com a formação dos seres vivos a partir de organismos unicelulares, das bactérias. Gradualmente, essa forma de existência se complexifica; os animais aparecem e enfrentam novos desafios de sobrevivência. Em última análise, trata-se da luta pela permanência, na qual as pessoas apostam em suas crenças coletivas como chave para o sucesso ou fracasso de seu empreendimento.
“Busquei diversas cosmovisões. Li ‘A Queda do Céu’, estudei [Ailton] Krenak, o livro ‘Ideias para adiar o fim do mundo’. Também li Sidarta Ribeiro. Explorei a cosmovisão judaico-cristã, como o mito de Eva, o mito de Abraão. Até mesmo Darwin e a evolução da espécie”, conta a coreógrafa.
Uma das imagens mais fortes do espetáculo é a figura da avó, que na cultura Kuikuro, é a criadora do mundo. Antes dela só havia escuridão. “Ela que desenha o mundo. Ela fuma um charuto e a fumaça que forma os seres vivos. Ela existe antes da criação do homem e da mulher. Eu trago ela na peça como a própria origem do mundo e gosto desse símbolo por se tratar de uma mulher e uma avó, uma anciã.”
Em “Sagração”, Deborah explora um contexto anterior à existência, uma que luta para perdurar, simplesmente sendo. O ponto de virada se dá, justamente, quando aquele sujeito (porque agora ele já se vê como indivíduo apartado do resto) se depara com a possibilidade da escolha e de encontrar o próprio caminho. Para isso, uma das ferramentas que ela utiliza é a mitologia cristã. “Me inspirei muito no mito de Abraão, na ideia desse sujeito andarilho que se distancia de sua cultura, parentesco e lugar de origem, buscando uma identidade própria. É um mito muito bonito. Também trouxe o mito de Eva, abordando a transgressão dessa mulher, sua desobediência a uma lei divina e seu encontro com o livre-arbítrio.”
Quando esses sujeitos encontram a si, passam a identificar seus inimigos com mais clareza. Por muito tempo, a natureza desempenhou o papel duplo de aliada e inimiga, pois desafiava a sobrevivência ao mesmo tempo que fornecia os meios de subsistência. Nessa retomada do primitivo, há uma clara referência aos desencontros contemporâneos, onde a espécie humana destrói seu próprio habitat. A destruição, portanto, é um componente fundamental nesta nova versão.
Uma das grandes mudanças no espetáculo atual é a ausência do sacrifício, aquele momento mais dramático em que a jovem dança até a sua morte. Deborah compreendeu que o sacrifício está na jornada, na transformação desses seres. A cada mudança, um aspecto de si é deixado para trás; está no processo. Nessa escolha, ela também imprime seu modo particular de ver a vida: com otimismo.
“Pensamos muito na destruição da floresta, do planeta, da cultura e da arte. E me peguei pensando: o que pode nos salvar? Acredito que a única possibilidade que encontro agora é o sonho, o imaginário, a criatividade. Porque o sonho é regenerador, nos abre a possibilidade de uma reconstrução.”
“Sagração” faz parte da trilogia de peças da Companhia, que começa com “Cão Sem Plumas” (2017) e “Cura” (2021). Após a temporada em São Paulo, a companhia dará continuidade à turnê do espetáculo por Goiás, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Santa Catarina.
De 14 a 30 de junho de 2024
Teatro Santander
Complexo JK Iguatemi – Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041
Quartas-feiras, Quintas-feiras, Sextas-feiras e Sábados, às 20h | Domingos, às 18h