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OLÁ,

“Enquanto você voava, eu criava raízes” toca a exuberância do existir

Poesia de rara beleza, o 25º espetáculo da Cia. Dos à Deux inverte perspectivas fazendo da magia realidade e da impossibilidade inspiração

Por Gabriela Mellão
Atualizado em 12 jan 2024, 17h32 - Publicado em 16 mar 2023, 23h17
Trecho da peça Enquanto Você Voava.
 (Renato Mangolin/arquivo)
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Como impor os limites da linguagem a uma obra essencialmente livre? Enquanto você voava, eu criava raízes, trabalho que celebra 25 anos de trajetória da companhia franco-brasileira Dos à Deux, escapa a formas e definições.

O espetáculo que chega a São Paulo com oito indicações dos prêmios cariocas Shell e Cesgranrio (entre elas as de melhor espetáculo, direção, música, iluminação e cenário), nasce do vácuo existente entre dança contemporânea, instalação performática e teatro. Não mira a territorialidade, mas, justamente, o não-lugar. Espalha-se pelo vazio das frestas, à beira do precipício, corpo e alma voltados para a vastidão dos mistérios da arte, do tempo, da vida.

Trecho da peça Enquanto Você Voava.
(Nana Moraes/arquivo)

A dupla fundadora da companhia, André Curti e Artur Luanda Ribeiro, responsável pela criação, coreografia, cenografia e interpretação da montagem, fez da pandemia um laboratório. Gerida em meio à guerra silenciosa que tornou a vida clausura, a obra nasce da tentativa de investigação das diversas manifestações do medo. Baseia sua fundação neste sentimento capaz de paralisar o homem tanto quanto de impulsioná-lo.

Os dois atores-bailarinos surgem em quadros crepusculares dentro de uma esfera metálica suspensa sobre o palco. São marionetes da existência, ponteiros do relógio implacável da vida cujas horas não cansam de encantar – tanto quanto de castigar. Até que ousem romper limites, criam ações poéticas reveladoras de estados múltiplos da existência dentro do contorno cilíndrico. Membros e corpos inteiros flanam, afundam, vão, vem, caem, levantam, dançam, dançam. Desafiam a força da gravidade e a percepção da plateia formando imagens oníricas. Algumas delas, como a da sombra de um personagem que se descola, ganha autonomia, são impossíveis de existirem segundo a lógica convencional, sem a extravagância da imaginação.

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Trecho da peça Enquanto Você Voava.
(Nana Moraes/arquivo)

A beleza e a impraticabilidade desses quadros fazem ressoar nos ossos do espectador a força do mundo da irracionalidade, próprio da arte, das emoções, da imprevisibilidade da vida. É um apontamento precioso num tempo excessivamente materialista como o atual, em que muitas vezes a cultura é encarada como a última das prioridades, sentimentos são reprimidos em detrimento da razão, do autocontrole, de benefícios materiais ou individuais.

Liberdade e encarceramento é uma das dicotomias trabalhadas em cena, ao lado de medo e coragem, paralisia e movimento, esperança e desalento. Em alguns momentos, as feridas de um mundo cindido ganham o foco. Em outros, os intérpretes iluminam raízes comuns de símbolos habitualmente vistos como antagônicos optando por confundir signos polarizadores do humano em vez de trabalhar suas discrepâncias. Como num milagre, por exemplo, voo e queda livre se tornam uma mesma ação. Os atores lançam-se sobre o abismo. Flutuam ou caem? Ao mesmo tempo em que flutuam, eles caem. É uma inversão de perspectivas que convida a um novo olhar sobre a arte e a própria existência, uma transgressão levando-se em conta a época fervorosamente afeita a polarizações de hoje.

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Trecho da espetáculo Enquanto Você Voava.
(Nana Moraes/arquivo)

O espetáculo apresenta a possibilidade de uma vida de convergências, num diálogo sensorial com o público. Propõe uma relação de soma em vez de subtração, sem antagonismos de qualquer ordem, na trilha de um caminho em que diferenças se confundem com semelhanças, rupturas se tornam laços e o ódio dá as mãos ao amor. Nesse sentido, pode-se apontar a liberdade como tema central desta obra.

Não há fronteiras em Enquanto você voava, eu criava raízes. Tampouco há história. Nem mesmo fio narrativo. Não há bordas, não há palavras, não há identidade fixa ou pré-determinada. E o que há? Há rigor estético, há escrita poética de um teatro físico sem limites ou concessões, há esperança.

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O espetáculo é o retrato da exuberância de possibilidades artísticas e existenciais pertencentes à humanidade, as quais permanecem à espera dela, de forma inabalável. Uma miríade de imagens de rara beleza que despertam os sentidos do espectador redirecionando sua sensibilidade para se abrirem a formas de vida que podem não parecer possíveis à primeira vista, mas são.

Trecho da espetáculo Enquanto Você Voava.
(Nana Moraes/arquivo)
Enquanto você voava, eu criava raízes

Sesc Santo Amaro – R. Amador Bueno, 505 – Santo Amaro, São Paulo
Até 2/4. Quintas e sextas, 21h; sábados, 20h e domingos, 18h
Ingressos: De R$ 12 a R$ 40

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