Entenda a peça “Hamlet”, de Shakespeare
Ao representar o confronto da consciência com a ação, a tragédia do príncipe da Dinamarca inaugura uma nova etapa da compreensão do homem moderno

Não existiria o homem moderno sem um autor como ele. “William Shakespeare, psicólogo incomparável, inventou para nós uma nova origem, na idéia mais iluminada até hoje descoberta ou inventada por um poeta: o auto-reconhecimento gerado pela auto-escuta”, diz o crítico americano Harold Bloom. Ele acrescenta que sem a peça Hamlet (1600- 1602) não haveria autores como o alemão Johann Wolfgan Goethe, como não seria possível o russo Fiódor Dostoievski escrever livros como os Irmãos Karamazov e Crime e Castigo.
Também o pai da psicanálise, Sigmund Freud, teve em Shakespeare um ancestral. O confronto com o pai, o complexo de Édipo, é devedor certamente da tragédia de Sófocles, mas, como indaga o mesmo Bloom, “seríamos capazes de escutar a nós mesmos e, como conseqüência de certos impactos, passar por mudanças, se não nos confrontássemos com o fantasma do nosso pai, prefigurado no Fantasma do Rei Hamlet?”
Hamlet é a síntese do homem amargurado com a consciência dilacerada pela presença de um fantasma – nesse caso, real, o do próprio pai –, que vem certa noite assombrá-lo na torre do que fora seu castelo, para pedir vingança contra seu irmão e sua esposa, que, após matá-lo, casaram-se, roubando-lhe o trono, a dignidade e a paz eterna. Ainda que o caso fosse considerado um incesto nos idos do século 16, o tio assassino e a mãe casaram-se às pressas. Logo após a morte do rei, serviram “manjares ainda mal esfriados” da refeição fúnebre. É o que revela o espectro, exigindo vingança contra o irmão Cláudio, tio de Hamlet, e contra a rainha Gertrudes, mãe de Hamlet. Pois Hamlet promete ao pai-fantasma trazer-lhe de volta a honra pelo sangue derramado dos que o rebaixaram.
A vingança, porém, permaneceria por muito tempo restrita ao mau humor e à especulação do príncipe, dada a incapacidade do jovem em equilibrar consciência e ação. Sua dor, transmutada em alguns dos versos mais conhecidos da história, traduz o conflito do homem com sua consciência.
“Ser ou não ser eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias
– E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono – dizem – extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais”
Não há outra peça de William Shakespeare (1546-1616) – e logo, não há outra peça no mundo – que levante tantas questões, diz o crítico canadense Northrop Frye. Para o autor, se não houvesse Hamlet, talvez não tivesse existido o romantismo ou até mesmo o filosofia do alemão Friedrich Nietzsche (1844-1990), que seguem a situação hamletiana do confronto entre a consciência e a ação do homem, sendo espelho de qualquer amargura, qualquer dor, qualquer dúvida de ser ou não ser do homem em qualquer tempo. Se a dor da consciência demora a cristalizar-se em ação, quando o faz é por meio da loucura. O príncipe decide simular que está louco como estratégia para confirmar o que lhe disse o fantasma. Pouco a pouco, na corte, todos percebem no jovem o germe da insanidade. Ofélia, sua jovem amada, não lhe perdoa a distância causada pela loucura.
O pai desta, Polônio, que até então o adorava, nem de longe pressente sua maldição futura. Hamlet o matará. Cláudio, ao saber da morte, o manda para a Inglaterra de navio, escrevendo ao rei do país que dê cabo do sobrinho por lá. Astuto, Hamlet descobre a carta, altera-a – põe como nomes a serem mortos os de Rosencrantz e Guildenstern, antigos amigos contratados pelo rei para vigiá-lo. Ele consegue voltar para a Dinamarca pagando aos piratas que assaltaram o barco.
A chegada do príncipe reacende o ódio de Laertes, irmão de Ofélia, que quer vingar a morte do pai, Polônio, e da irmã – que “se afogou em legítima defesa”, nas palavras de um dos coveiros da trama, no dia da chegada de Hamlet ao reino da Dinamarca.
Um duelo entre Hamlet e Laertes é organizado pelo rei – que envenena a espada e uma taça de vinho para garantir a morte do sobrinho. Após a luta, Laertes confessa a traição. Ao mesmo tempo a rainha se suicida, bebendo da taça que sabia envenenada. Possesso de raiva, o príncipe transpassa o rei com sua espada. Numa cena de tanta tragédia, morrem Hamlet, Laertes, a rainha e o rei. O príncipe, agonizante, pede a Horácio, amigo fiel durante toda a vida, que ajude a dar posse a Fortimbrás, príncipe da Noruega que acaba de chegar ao castelo, como novo rei da Dinamarca, ao som de artilharia e da marcha fúnebre que encerra a peça.
Para o britânico Martin Lings, estudioso de Shakespeare que vê no autor semelhanças com A Divina Comédia, de Dante Alighieri, “Hamlet não é um drama de amor, mas sim de combate espiritual, de renúncia, de morte e de renascimento”, que perfaz uma “descida aos infernos” para resgatar a moralidade e a leveza de espírito rumo ao paraíso.
Mas, afinal, por que nunca a peça perdeu a sua atualidade? Talvez porque nenhum outro texto até hoje tenha expressado tão profundamente a angústia do ser humano em relação à morte. Outra explicação da atualidade de Hamlet e por conseqüência de seu autor é dada pelo crítico inglês Martin Seymour-Smith. Segundo ele, “Shakespeare, mais do que qualquer outro escritor, devolve a verdadeira literatura ao domínio do povo, a quem ela, em última análise, pertence: esse esquivo e indefinido leitor comum”.
O escritor Miguel de Unamuno cunhou a expressão intra-história para designar fatos, expressões, canções e manifestações do homem comum que por muitos decênios não interessavam aos acadêmicos ou aos historiadores. Seymour-Smith toma emprestada essa expressão justamente para afirmar ser a intra-história o tema da obra de Shakespeare. “É a minha vida, a sua vida, a vida de qualquer um” o que o leitor encontra em suas páginas. Como um único autor conseguiu realizar essa proeza e atravessar séculos sendo lido, encenado e festejado? O mesmo Seymour-Smith arrisca uma resposta possível: “Isso é uma espécie de milagre ou, pelo menos, assim parece”.
William Shakespeare no cinema
Influência do dramaturgo na cultura pode ser medida pela variedade de adaptações de sua vida e obra para o cinema. Conheça algumas delas:
Hamlet (1948) – Laurence Olivier
Macbeth (1948) – Orson Welles
A Tragédia de Otelo (1952) – Orson Welles
Trono Manchado de Sangue (1957) – Akira Kurosawa (baseado em Macbeth)
Otelo (1965) – Stuart Burge
Romeu e Julieta (1968) – Franco Zeffirelli
A Tragédia de Macbeth (1971) – Roman Polanski
Ran (1985) – Akira Kurosawa (baseado em Rei Lear)
Hamlet (1990) – Franco Zeffirelli
Otelo (1995) – Oliver Parker
Hamlet (1996) – Kenneth Branagh
Noite de Reis (1996) – Trevor Nunn
Romeo + Juliet (1996) – Baz Luhrmann
Shakespeare Apaixonado (1998) – John Madden
Hamlet (2000) – Michael Almereyda
O Mercador de Veneza (2004) – Michael Radford
Macbeth (2006) – Geoffrey Wright
Ela É o Cara (2006) – Andy Fickman (baseado em Noite de Reis)
Este texto faz parte do especial “100 livros essenciais da literatura mundial” e foi originalmente publicado pela Revista Bravo! em 2007