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Jessica Chastain alcança a perfeição em A Doll’s House

Com estreia na Broadway, o espetáculo atualiza o texto de Henrik Ibsen mostrando a emancipação de uma dona de casa

Por Humberto Maruchel, de Nova York
19 jun 2023, 11h34
Okieriete Onaodowan e Jessica Chastain em cena de A Dolls House.
Okieriete Onaodowan e Jessica Chastain em cena de A Dolls House. (A Dolls House/divulgação)
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Minutos antes da peça Uma Casa de Bonecas (A Doll’s House) iniciar no Hudson Theatre, na Broadway, enquanto os espectadores estão encontrando seus lugares, conversando, uma figura ocupa o palco. Sentada em uma cadeira no centro da cena está Jessica Chastain, quase imóvel, com os braços cruzados e o olhar ausente. Enquanto faz pequenos gestos, um tablado onde está a cadeira, gira em 360º. A peça, originalmente escrita por Henrik Ibsen e publicada em 1879, ganhou nova versão pelas mãos da dramaturga Amy Herzog e direção do britânico Jamie Lloyd. Jessica vive a dona de casa Nora Helmer.

Sem fazer qualquer alarde com a sua entrada e com movimentos imperceptíveis, a presença da atriz e personagem podem ser confundidas com a de uma boneca hiper-realista. Não seria inverossímil, afinal essa tem sido uma técnica replicada em peças estrangeiras e, também, brasileiras (como aconteceu nas peças Ficções e Três Mulheres Altas, no Brasil). Mas é, sim, Jéssica, que, ao mesmo tempo que parece enxergar tudo ao seu redor, está presa como aquelas bonecas que permanecem apoiadas numa haste de plástico. O que está em jogo, como se pode imaginar numa obra escrita no século 18, é a condição ainda mais limitada da mulher, subjugada a papéis subalternos ao homem.

Arian Moayed and Jessica Chastain in
Arian Moayed e Jessica Chastain em “A Dolls House” (A Dolls House/divulgação)

Naquela redoma, a vida de Nora gira em torno de seu marido, Torvald (Arian Moayed). A peça apresenta a relação do casal num misto de afeição mútua e a repreensão do esposo sobre os gastos excessivos de Nora. O relacionamento se assemelha ao de pai e uma filha. Nora é tratada como uma criança inconsequente e insubmissa, que tenta tranquilizar o marido ao lembrá-lo do futuro promissor que os espera – Torvald está prestes a assumir o cargo de diretor de um banco de investimentos. Tudo, afinal, parece estar bem para a família. Os conflitos começam a dar as caras quando Kristine, uma antiga colega de classe de Nora, aparece em sua casa. Viúva e sem filhos, Kristine pede ajuda de Nora para conseguir um emprego, e sugere que a colega peça ao marido um trabalho no banco.

Conversa vai e vem, e o jeito aparentemente ingênuo de Nora provoca um comentário na amiga. Nora parece uma criança mimada e não conhece o lado feio da vida. Abalada pela observação de Kristine, a personagem de Jessica, logo tenta convencê-la do contrário e faz a primeira de muitas revelações. Nora confidencia que salvou a vida do marido há algum tempo, que havia contraído tuberculose e fora aconselhado pelo médico a fazer uma viagem para Itália, o clima mais ameno o ajudaria a se recuperar. Sem meios de arcar com os custos de uma temporada em outro país, e com um marido fraco e desalentado, Nora contrai uma imensa dívida e, decide arcá-la à sua própria maneira, sem que Torvald soubesse. O prazo, no entanto, é longamente ultrapassado e o montante necessário para o pagamento está longe de ser alcançado. Desesperada, ela, então, se vê em uma encruzilhada entre contar a verdade ao marido, pedir ao melhor amigo da família, Dr. Rank – apaixonado por Nora – saldar a dívida. Ou em última instância, o suicídio.

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Jessica Chastain
Jessica Chastain (A Dolls House/divulgação)

O peso da mentira, ou da traição de Nora, é resultado da ação de uma mulher que ultrapassou o limite de sua independência, a ponto de considerar o suicídio como resposta. Ela tem convicção de que, apesar de ter tomado uma atitude visando o bem do marido, sua escolha é também uma das maiores traições, pois ela agiu sem sua permissão.

Embora o texto já tenha há muito superado cem anos, não cabe aqui dar spoilers, apenas dizer que a despeito da densidade dos assuntos levantados pela dramaturgia, o fim de Nora não é trágico. Pode-se, sim, dizer que ela atravessa um tipo de morte e um renascimento, muito mais próximos à ideia da emancipação de uma mulher aprisionada pelo marido e por seu tempo. A montagem de Jamie Lloyd é completamente despida de cenário ou artefatos que possam sugerir uma época qualquer. Há apenas uma projeção na parede do fundo do teatro, indicando o ano 1879, em que a peça foi apresentada pela primeira vez.

Jessica Chastain e Okieriete Onaodowan
Jessica Chastain e Okieriete Onaodowan (Emilio Madrid/divulgação)

No cenário rotatório, que representa essa casa-prisão, de onde Nora nunca sai, todos que estão ali dentro, de certa maneira, acabam se tornando peças num grande maquinário, em um mundo em que não possuem qualquer controle. Quer dizer, alguns possuem mais do que outros.

A adaptação de Amy Herzog simplifica um texto extremamente rebuscado de Ibsen, permitindo uma conexão maior com o presente, sem tirar a engenhosidade e intenções do primeiro autor. O mérito maior, no entanto, é possível estar nas atuações, especialmente de Jessica. Formada em Juilliard School, a mais concorrida e melhor escola de artes dramáticas do mundo, com bolsa de estudos doada por ninguém menos do Robin Williams, Jessica brilha na televisão, no cinema (já foi indicada a três Oscars, vencendo um), mas é no teatro em que alcança sua potência total.

o elenco de A Dolls House: Arian Moayed, Jesmille Darbouze, Okieriete Onaodowan, Tasha Lawrence, Jessica Chastain e Michael Patrick Thornton
o elenco de A Dolls House: Arian Moayed, Jesmille Darbouze, Okieriete Onaodowan, Tasha Lawrence, Jessica Chastain e Michael Patrick Thornton (A Dolls House/divulgação)

Com uma montagem que depende inteiramente do texto, é fundamental que a interpretação esteja inteiramente afinada para a peça não derrapar e a audiência não perder a atenção ou cair no sono. Assistir Jessica Chastain é cena é um presente, é se pegar sorrindo diante de sua atuação, com a atenção totalmente presa. Nenhuma palavra ou frase é dita sem uma intenção, ou sem sugerir outras camadas que possam ir à contramão do que a personagem. Indicada como melhor atriz pelo Tony Awards, não será nenhuma surpresa caso seja anunciada como vencedora.

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