Marisa Orth é Bárbara
A atriz encena a luta da jornalista Barbara Gancia contra o alcoolismo em curta temporada no Teatro Bravos, em São Paulo
Para um artista da cena, um dos maiores desafios que pode encontrar na carreira é representar uma pessoa real. Com mais de 40 anos de carreira, Marisa Orth se deparou com esse teste no meio da pandemia. A prova parecia ainda mais custosa por um motivo: tratar de um tema ainda tabu, o alcoolismo. A tarefa central para a atriz era representar a doença de uma maneira respeitosa de uma pessoa que está viva e que poderia, inclusive, assistir à peça – algo que aconteceu. Tudo começou com uma vontade do diretor Bruno Guida, que leu a biografia “A Saideira: Uma dose de esperança depois de anos lutando contra a dependência”, da jornalista e apresentadora Barbara Gancia e pensou que aquelas histórias dariam um ótimo espetáculo.
Para a verdadeira Barbara, não havia muitos problemas, mas tinha uma condição: que Marisa Orth a interpretasse. Para Marisa, os motivos, até hoje, após anos da estreia, não são muito claros. Já para o público, entretanto, essa parece uma decisão muito bem acertada; Marisa carrega consigo a capacidade de fazer comédia de forma espontânea, sem forçar, mas, além disso, consegue ir e voltar em momentos que requerem muita intensidade dramática, e ser tão convincente quanto. Embora sejam muito diferentes entre si, algumas semelhanças parecem óbvias entre as duas.
Uma premissa sugerida por Barbara foi que a peça mantivesse os momentos de humor. Afinal, sua vida toda foi uma grande festa, ela reconheceu. Sem falar que muitas vezes a comédia parece refletir de maneira mais apurada os absurdos de nossa existência. Quando há álcool envolvido, isso se torna ainda mais evidente.
Adaptada por Michelle Ferreira, a peça “Bárbara” (o título tem acento, diferentemente do nome de Barbara Gancia, o que oferece outra conotação à peça), traz alguns relatos da jornalista em sua longa luta contra o alcoolismo; desde a sua descoberta até o momento em que reconheceu que precisava tomar uma atitude a favor de sua própria saúde e, no limite, da própria sobrevivência.
Acostumado a ver Marisa encenar papéis leves e cômicos na televisão, possivelmente, o público se surpreenda com a sua interpretação. A comédia ainda dá o tom, mas ela vai muito além neste mergulho, que ela considera diferente de tudo que já fez em sua carreira.
Em cartaz no Teatro Bravos (dentro do Instituto Tomie Ohtake), a peça “Bárbara” faz curta temporada até 28 de abril em São Paulo.
Marisa Orth conversou com a Bravo! sobre o seu processo para interpretar Barbara Gancia e refletiu sobre a relação que criamos, enquanto sociedade, com o álcool.
Como a peça chegou até você?
A peça foi ideia do Bruno Guida, o diretor, que leu o livro e achou que daria uma peça. Ele cutucou a produção, na época a Renata Alvim. Cutucaram a Barbara, que disse “Só se a Marisa Orth topar”. Me perguntaram, a Renata enviou o livro. Mas eu disse que não tinha por que fazer a peça, já estava excelente em termos de literatura, já estava numa ótima forma. “Vamos fazer o quê?”. Então, o Bruno me ligou, na época mais dura da pandemia, sem luz no fim do túnel, quando nós tínhamos medo até de falar ao telefone. Ele falou um monte. Falou sobre a técnica do Bufão, e não sei mais o quê. E eu disse “Ah, falar com o público, é isso que você está dizendo?” Não sabia que isso tudo tinha nome. E ele me convenceu de tão entusiasmado que estava. Eu nem sequer conhecia ele pessoalmente.
Ele disse que não queria fazer o livro, mas uma peça a partir da obra. Eu conhecia a Michelle Ferreira, a dramaturga da peça, já tinha ouvido falar dela e ela era parceira de uma grande amiga minha, a Juliana Rosenthal, que escreveu “O inferno sou eu” (peça sobre Simone du Beauvoir que Maria interpretou em 2010). Foi aquela coisa que a pandemia provocou em todos nós, de buscarmos razões para ter esperança e sair de casa.
A Barbara teve uma escolha muito acertada de pensar em você. Pois após assistir à peça, é muito difícil imaginar outra pessoa no lugar.
Foi muito legal porque o Bruno e a Barbara queriam que eu fizesse.
Você tinha alguma relação com ela?
Conhecia mais ou menos, era amiga de amigos. Lia as coisas que ela escrevia. E quando fundamos o Saia Justa, ela era conhecida da Fernanda (Young), mas não éramos próximas.
Trata-se de um tema muito denso e, para muitas pessoas, pode remeter a histórias de muito sofrimento, mas o tempo todo ele é permeado pela comédia. Por que essa escolha de mesclar essas duas linguagens para lidar com um tema como esse?
Começa com o astral da própria Barbara. Se você lê o Saideira, você não acredita, porque é pior, no sentido de contar casos, e ela sempre mantém o humor. Acabou sendo um pedido dela: “Por favor, não dissociem o drama alcoólico do humor, da festa. Pois veja, minha vida foi uma festa, se eu não fosse doente, minha vida seria maravilhosa.” Ela quis que as pessoas soubessem que é dentro da alegria que mora o perigo, dentro da festa. Se tratarmos apenas como uma coisa terrível, nós nos dissociamos daquilo, achamos que não tem a ver conosco. Mas tem mil outras possibilidades de ser alcoólatra, inclusive, produtivamente, trabalhando bem, e numa circunstância grave.
Fora que é o meu jeito também, eu prefiro. A vida é assim, é muito misturada. Sou uma atriz que se criou no besteirol, que é o teatro brasileiro que nasce nos anos 1980, que é Mauro Rasi, Vicente Pereira, Naum Alves de Sousa.
Você tinha claro quais eram os limites que não deveria ultrapassar para não cair em clichês?
Não, e nem sei até agora (risos). Acho que o processo foi muito legal. Nós saímos outro dia com a Michelle, a autora, e eu perguntei para ela: “Vem cá, daqui a 100 anos, se essa peça vai para uma biblioteca virtual, que seja, um estudante de teatro em 2090 vai querer fazer essa peça?” Eu fiquei pensando sobre isso. Começa com um rap da Barbara (“Meu nome é Barbara, eu sou super legal, sou tudo, sou foda”), que mostra a onipotência do bêbado. Aquele causo de Pirassununga, no carnaval, foi meu. Então teria que ter alguns ajustes para ir para essa biblioteca e se tornar interessante no futuro. Acho que ela criou várias cenas, costurou e fomos escrevendo durante os ensaios. Fizemos teste de COVID-19 todos os dias, e fomos fazendo os cortes. Acho que todos foram controlando os limites uns dos outros.
Você lida com o desafio de interpretar alguém que teve problemas sérios com álcool. O que para você, nesta representação, era importante destacar?
O momento mais difícil foi quando ela foi assistir ao ensaio. Aí foi difícil. Era uma sala branca, nua, sem nenhum artifício, não tinha trilha, nem luz. Ela estava a alguns metros de mim. Nossa, que nervoso. E anotava num bloquinho com uma caneta. Mas ela se emocionou, ela chorou, gargalhou. Ela falou duas coisas: que não era para usar a palavra “vício”, pois envolve um julgamento de valor, a palavra correta é “dependência”. E numa outra hora, no texto, eu falo “Eu fiquei sozinha na enfermaria, vendo bichos na parede”. Ela disse que isso não era engraçado porque tem graus de alcoolismo em que a pessoa vê bichos na parede. É real, ela entra num estado de deterioração do tecido cerebral tão grave que delira para sempre.
No mais, ela adorou. Depois disso, dessa aprovação dela, fiquei muito mais segura.
Você traz relatos seus também. Por que a escolha de se colocar como Marisa Orth e não mais como personagem?
Putz, foi tão orgânico, cara. Cada dia vinha com uma ideia. Essa foi ideia da Michelle, e eu topei. Na peça eu falo sobre o meu porre aos 13 anos e eu achava que essa era uma experiência única e no livro da Barbara eu descobri que isso tem nome, que se chama Binge Drinking. É uma coisa que, geralmente, acomete adolescentes mulheres, que tentam ingerir a maior quantidade de álcool de forma mais rápida. Eu fui muito dentro da estatística, e me achava tão criativa, tão diferentona. Mas isso está catalogado, bicho. Você compra um manual de psiquiatria, está lá. E achei interessante falar disso. Eu poderia ter virado alcoólatra, que bom que isso não aconteceu. Com 13 anos, sem o lobo frontal pronto, que acaba de ficar pronto aos 21 anos, muitas vezes chega aos 18 já dependente.
Você teve o trabalho de copiar os trejeitos da Barbara?
Nada, nada, nada. O Bruno fez uma direção absurdamente moderna. Eu perguntava qual cabelo, unha, colocaria, ou qual peso teria. E ele disse que eu poderia fazer como eu quisesse. “Não queremos fazer uma peça realista”, ele disse. O livro dela é tão bem escrito, tão verdadeiro ao que ela é, que você escuta ela falando. Tem vários pedaços que estão, sim, no livro, que o jeito dela falar veio com muita naturalidade. Quando vi, estava fazendo ela.
E ela foi se aproximando, foi assistir ao ensaio, foi numa reunião, e eu fui observando. Fui pegando o som da voz dela, o sotaque paulistano violento. Não é nem paulistana, a bicha é italiana mesmo. Ela é a única da família que nasceu no Brasil.
Você teve conversas com a Barbara durante a criação?
Não, nada. Só a vez que ela foi ao ensaio. O Bruno não queria.
Isso é bem surpreendente.
Nós nunca direcionamos para isso. Tem muita gente que não conhece ela, e tem um monte de gente que não leu o livro. Então achei interessante não direcionar para isso, tinha que servir para todo mundo.
Nesse processo todo, o que foi mais difícil?
Fazer uma peça totalmente diferente do que eu já fiz. Ser um monólogo, que é muito difícil. A responsabilidade é sua. É muito difícil também manter o ritmo da encenação. Você tem que acelerar em alguns momentos, ralentar em outros. Se você acelera demais, ninguém vem junto. Se você ralenta muito, o povo acha um saco, porque no monólogo todos sabem que não vai entrar mais ninguém. Eu tenho o luxo de ter o Fabricio (Fabricio Licursi) ao lado, então nem chamo tanto de monólogo, porque ele foi muito presente também. Ele foi meu diretor de movimento.
Como que a técnica de Bufão entra na peça?
É o falar do público, é aquelas risadas. O Bruno definiu que a Barbara é um bufão na vida. Cospe na cara, xinga as pessoas, isso sem beber. É que ela fala as barbaridades, depois pede desculpas e diz que estava brincando.
E no espetáculo, vocês não tentaram amaciar esse comportamento dela.
Cagona, com medo de cancelamento, o termo que eu uso é esse. Todo mundo se caga. É o bobo da corte. Ela fala um monte de coisas erradas e um monte de coisas certas. E eu acho que temos cada vez menos pessoas corajosas.
O que para você ficou de aprendizado depois da peça?
Sou muito menos corajosa do que a Barbara, sou cagona de cancelamento. Admiro pessoas que têm o mesmo atrevimento que ela. Embora sejamos do mesmo signo, librianas. Ela é do mesmo signo que o Miguel Falabella, olha que engraçado. Mas o que ficou para mim foi que precisamos falar desse assunto no Brasil. Ninguém fala, não tem uma família neste país que não tenha esse problema dentro da própria família ou que não esteja a um grau de separação. É o namorado, o vizinho, o primo, o tio. Ou é dependente de álcool, barbitúricos, remédios, comida, relacionamentos tóxicos, etc. E álcool é uma loucura neste país. Como é fácil conseguir álcool! É mentira que pessoas com menos de 18 anos não podem comprar. Se você olhar os números, não mata só quem toma, mas quem está em volta também. Na pandemia houve um aumento imenso do consumo de álcool, e vimos a violência que estava atrelada a isso. O feminicídio, acidente de trânsito, estupro. Arruína famílias, arruína talentos.
A Barbara acha que o Alcoólicos Anônimos é a única possibilidade de remissão. Mas por que tem que ser anônimo, ela pergunta. Teve um tempo que as pessoas tinham vergonha de assumir, até hoje isso existe. Dá vergonha ter uma doença, pois pensamos que é uma falha de caráter. Ela cita os norte-americanos, que quando há uma celebridade com algum tipo de dependência, a primeira coisa que fazem é ir a público, criam associações, chamam pessoas, fazem campanhas, arrecadam fundos. Aqui nós nos escondemos, jogamos para debaixo do pano. E nisso, vai morrendo cada vez mais gente.
Você mudou a sua relação com o álcool depois dessa peça?
Sim, infelizmente, sem perceber. É uma lavagem cerebral que já dura 3 anos. Hoje, eu bebo com outra consciência, me pergunto mil vezes se preciso beber, porque vou beber, com quem vou beber, quanto vou beber. Eu respeito muito mais a droga. Foi uma mudança profunda. Sou muito grata por poder continuar bebendo, mas eu respeito muito mais a bebida.
Você ouviu depoimentos de pessoas que foram assistir ao espetáculo? Como foi a resposta do público?
Outra coisa que a Barbara falou para gente é que estávamos comprando uma briga, mas nós não entendemos isso. Daí fomos viajar o Brasil e, cara, é cada depoimento. Na primeira temporada, ainda na pandemia, quando podíamos encher 60% da plateia, teve m cara que nos avisou antes que ele ia, reservou o lugar. Ele saiu da clínica com um terapeuta, quase na guia, assistiu à peça e depois voltou para internação.
Tem pessoas que vêm e me dão a ficha vermelha do AA. Muitas mulheres me abordam; o alcoolismo está crescendo muito entre as mulheres. Duas moças, super jovens, com cara de estudantes, chegaram e disseram “Oi, tudo bem? Nós somos alcoólatras”. E eu perguntei como era aquilo para elas. Uma delas disse: “Eu sempre fui muito tímida e a primeira vez que bebi, eu dancei, dei em cima do cara que eu era a fim, tive coragem, fiquei conversando com as meninas populares e pensei ‘Nossa, eu sou tão maravilhosa bêbada’.” E ela nunca mais parou.
Tem um relato muito foda que recebi em Brasília. Uma moça chorava tanto, ela veio, me abraçou e me disse: ‘Muito obrigado, eu consegui perdoar a minha irmã. Minha irmã não venceu, ela morreu com 37 anos e foi internada 13 vezes’. Ela chorava muito e dizia que as pessoas lembravam com raiva, dizendo que a irmã estaria viva se ela não bebesse. E ela agradeceu muitas vezes e disse que tinha conseguido perdoar a irmã finalmente. Isso é muito forte.
Eu nem imagino o quanto. É uma responsabilidade gigantesca.
É, sim, e é muito bonito. E é uma coisa de Deus. Deculpa, você pode chamar como quiser: Deus, Oxalá, Olorum, infinito, vê aí. Mas é uma coisa de um ser humano ajudar o outro.
Eu comentei com a Barbara: “Graças a Deus que eu não sou [alcoólatra]. E ela perguntou: ‘Quem te garante?’. Tem muitos tipos de alcoólatras. E existe alcoolismo na terceira idade, pessoas que depois dos 70 se tornam alcoólatras. É a eterna vigilância. E você não sabe se a sua vida não vai virar uma bosta de repente. Espero que não, mas é cada trombada que a gente leva, né bem?! A cachaça está ali do ladinho.
Lembra da música “Regra Três”, do Vinícius de Moraes? “Mas deixe a lâmpada acesa Se algum dia a tristeza (quiser entrar). E uma bebida por perto. Porque você pode estar certo que vai chorar.” Vinícius, um grande gênio, teve a vida encurtada devido ao álcool. O Anthony Hopkins, aquele ator que todos os artistas babam, está há 47 anos em remissão e ele comemora. O David Bowie também estava. Tem uma entrevista maravilhosa com ele, em que o cara pergunta: ‘Mas você não toma nada, nem uma taça de vinho?’ E ele diz que uma taça de vinho, para ele, seria o beijo da morte.
Hoje em dia, eu não ofereço bebida duas vezes para ninguém. Eu adoro receber as pessoas em casa, sempre tem um drink, um vinho, mas eu respeito, não insisto mais. Bebida é droga. “Que careta, que saco”, eu falava. Eu era a rainha de fazer isso.
É aquela história: se todo mundo bebeu além da conta, ninguém bebeu demais. Os níveis para cada um é muito diferente. Tem gente que duas doses é mortal. Por amor ao nosso país, temos que ficar atentos e falar sobre isso.
Você gostaria de comentar mais alguma coisa sobre a peça ou o tema?
Que as pessoas assistam e que voltem ao teatro. O teatro tem uma força tão legal depois da pandemia. É uma experiência que modifica. Tem muita coisa ruim, claro, porque fazer teatro é muito difícil. Mas quando acerta, é imperdível.
Temporada: de 01 de março a 29 de abril de 2024 (Excepcionalmente dias 05, 06 e 07 de abril não haverá espetáculo)
Horários: sextas-feiras e sábados, às 21h; domingos, às 18h
Local: Teatro Bravos
Endereço: Complexo Aché Cultural – (Rua Coropés, 88 – Pinheiros)
Classificação etária: 14 anos