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A odisseia de Molly Bloom ultrapassa a perplexidade do desejo

A adaptação teatral do último capítulo de Ulisses, dirigida por Daniela Thomas e Bete Coelho, sobrepõe leituras ao ícone feminista e de liberdade sexual

Por Gabriela Mellão
Atualizado em 3 mar 2023, 13h11 - Publicado em 3 mar 2023, 11h05

Vista pelos olhos contemporâneos, a obscenidade apontada há um século em Ulisses, de James Joyce, que resultou em um dos casos mais célebres de censura da história da literatura, já não tem o poder de perturbar.

No espetáculo Molly Bloom, adaptação do último (e mais picante) capítulo do romance de Joyce, Bete Coelho surge no papel da personagem-título mais como símbolo libertário do que libertino. Sob direção da cenógrafa Daniela Thomas em parceria com a própria atriz, Coelho expõe a intimidade irrevelável de Molly em uma noite de insônia deitada na cama ao lado do marido Leonard Bloom (Roberto Audio), que dorme. Não há filtro no fluxo ininterrupto de pensamento ou polidez nas linguagens física e oral da protagonista. Munida de seu arsenal de recursos vocais e corporais, Beth Coelho discorre sobre segredos, desejos e traições, manipula os seios, abre e fecha as pernas, goza, solta gemidos e até gases.

Se no romance de Joyce Molly é percebida de forma pejorativa pelos personagens e chega a ser vista como prostituta, na pele da atriz, ela é uma mulher segura de sua feminilidade. Em harmonia com a sexualidade e não apenas consciente de seus impulsos controversos, gentil com eles. Tal mudança de perspectiva se dá pelo peso do tempo. Sob supervisão de um dos principais tradutores de Joyce, Caetano Galindo, a peça se mantém fiel à obra, fazendo apenas recortes no texto.

O cenário cubista de Thomas, composto por uma superposição de espelhos e projeções, sugere justamente essa necessidade de se fazer uma leitura plural do monólogo final de Ulisses. Também amplia detalhes e destaca a beleza da dança de Molly na cama. Os diversos reflexos multiplicam os pontos de vista do espectador ao mesmo tempo em que tornam sua experiência mais estimulante ao oferecer-lhe a profusão dos recantos escondidos de Molly Bloom, e, deste modo, o papel de voyeur.

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Thomas e Coelho incluíram no texto um prólogo com trechos do penúltimo capítulo do livro. Nele, Leopold Bloom finalmente volta para casa, depois de perambular pelas ruas de Dublin em um dia longo e cansativo. Fala sobre si e sua odisseia exaustiva de 24 horas enquanto se prepara para deitar na cama ao lado da esposa, que finge dormir.

Trata-se de uma alteração sutil, de impacto significativo na montagem. Ao dar voz ao personagem, apresentar suas questões, o afeto pela mulher, a apreensão por ter sido traído e suas próprias traições, a obra o humaniza. Humanizando-o, conecta o casal e amplia o alcance da peça para que também tangencie o amor.

Em Ulisses, Joyce compõe sua versão para a Odisseia de Homero. Coelho e Thomas apresentam a de Molly Bloom em uma noite de insônia navegando nas águas de sua complexidade. Ela é ícone feminista, mas não só. É símbolo de liberdade sexual, mas não só. É uma mulher que ama, mas não só.

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