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Realidade e ficção em duelo nas peças “Sombras, Por Supuesto” e “Tierra”

Espetáculos intensificam o jogo entre verdade e ilusão próprio da arte teatral; Leia a crítica completa

Por Gabriela Mellão
Atualizado em 20 set 2024, 16h58 - Publicado em 19 set 2024, 09h00
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Tierra de Sergio Blanco (Nairí Aharonián/divulgação)
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A atriz Andrea Davidovics é duplicada em cena em “Tierra”, espetáculo do artista franco-uruguaio Sergio Blanco que fechou, no último fim de semana, a 7ª edição do Mirada – Festival Ibero Americano de Artes Cênicas em Santos e pode ser visto quarta (18) e quinta-feira (19) em São Paulo na extensão paulistana do evento. Por meio do recurso audiovisual, sua imagem é projetada em duplicidade no telão do fundo do palco, de modo a sugerir uma conversa entre dois personagens.

A imagem sintetiza a pesquisa artística de Blanco. O dramaturgo e encenador é um dos expoentes da autoficção na cena teatral da contemporaneidade, dedicado ao exercício de dialogar consigo próprio como autor e personagem.

Blanco acredita no poder curativo da palavra e faz uso de seu teatro como campo terapêutico para tratar de temas pessoais. Em “O Bramido de Düsseldoff, apresentado no país em 2019, reelaborou a relação com o pai levando ao palco diálogos que não pode ter com ele na vida real. Em “ A Ira de Narciso”, visto no Brasil na encenação do artista e na remontagem brasileira de Yara de Novaes, refletiu sobre a própria profissão aproximando sua pulsão criadora `a do mito de Narciso.

A partir de seus mergulhos umbilicais, o desejo do autor e diretor é alcançar a universalidade.

“Tierra” nasce da tentativa de ressignificar a morte da mãe, Liliana Ayestarán, que foi professora de literatura e morreu em seus braços em 2022. Presente em cena como personagem de si mesmo, o ator e ater-ego do artista trabalha o luto de seu criador trazendo à cena três ex-alunos de Liliana cujas vidas foram impactadas por sua presença, além de também marcadas por perdas familiares.

Num espaço que recria a quadra escolar e o escritório da mãe, o personagem Blanco conversa com a trinca remontando memórias e diálogos que cada um teve com ela.

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Como de praxe em seus espetáculos, “Tierra” têm início com a exposição do próprio fazer teatral em que o ator apresenta suas intenções como criador, introduz personagens, constrói e descontroi repetidamente as cenas diante dos olhos da plateia reforçando continuamente o jogo existente entre ator e personagem.  

A tensão entre realidade e ficção é intrínseca à arte teatral. Pode ser mais ou menos latente mas está sempre presente na medida em que um ator serve-se de sua presença real na criação de uma obra.

Blanco esgarça essa tensão até o limite de suas forças para impulsionar a reflexão sobre o quanto de verdade e de mentira existe no palco e, da mesma forma, na vida real.

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Do argentino Marco Canale, “A Velocidade da Luz” (Fernanda Luz/divulgação)
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Imperfeição como recurso estilístico

A peça do argentino Marco Canale, “A Velocidade da Luz”, feita especialmente para esta edição do Mirada, utiliza material autobiográfico como ponto de partida para a criação. Fruto de uma residência de quatro semanas entre o diretor com moradores idosos de Santos sem experiência teatral prévia, o espetáculo entrelaça histórias reais e ficcionais. Os relatos de cerca de 40 pessoas apresentam sonhos e vivências individuais e são costurados por um roteiro elaborado por Canale que se conecta com a história do município.

Assim como em “ Tierra”, as fronteiras entre verdade e invenção se misturam em cena tornando impossível a tarefa de distingui-las. Como o próprio alter-ego de Blanco diz no palco, não importa diferenciar realidade e ilusão. O que está em questão é o jogo teatral. Ele deseja trazer a plateia para o centro da cena, como agente deste campo de questionamento intitulado teatro. Em suas peças, o espectador se surpreende suspenso no espaço, se questionando a cada momento sobre se o que vê é de fato verdadeiro ou material ficcional.

Na medida em que desenrola os emaranhamentos da cena e compõe mentalmente a conclusão do quanto de descaminhos há nos caminhos propostos na montagem, acaba por exercer papel ativo na peça, atuando como uma espécie de investigador. Não é preciso chegar a um veredito, o fundamental é estar no jogo e nele permanecer junto com os artistas.

Ao exporem suas autobiografias ficcionalizado-as, Sergio Blanco e os atores de “A Velocidade da Luz” surgem amparados pelo conforto da frequente possibilidade da dúvida da veracidade ou não de suas histórias. No caso desta última, o uso de personagens reais amplifica a exposição, e a inexperiência teatral do elenco acaba poradicionar fascínio ao jogo da cena. A fragilidade da atuação dos não-atores se converte em recurso linguístico capaz de ressaltar, talvez erroneamente, a autenticidade dos relatos.

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Se a imperfeição de “A Velocidade..” acaba por imprimir credibilidade à exposição, exalta, por outro lado, as deficiências do espetáculo como obra acabada.

A excelência formal de Tierra” salta aos olhos. Branco soube transformar sua pesquisa teatral em fórmula, a qual reproduz e apura de modo progressivo, a cada trabalho. Como conteúdo seu espetáculo não alcança o patamar dos outros apresentados no país. É uma autoficção que carece de exposição de seu autor.
Talvez pelo fato de
escalar três personagens para falar sobre a mãe em seu lugar, o franco-uruguaio se abstém de revelar-se emprofundidade, e ainda cria uma imagem materna um tanto mitificada.

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Entre os destaques da mostra paulistana do Mirada também está Sombras, Por Supuesto, da Cia. argentina El Silencio, sob direção de Romina Paula. A trama com ares realistas e diálogos que flertam com o absurdo faz uma crítica ao abuso de poder ao retratar a invasão de dois policiais na casa de um casal. Eles inventariam a residência em busca de evidências de um caso misterioso, sobre o qual não explicam. A dupla tudo entrega aos agentes. Fica exposta, à mercê dos disparates exigidos pelos supostos executores da ordem. 

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Sombras por supuesto (Sebastian Arpesella/divulgação)
Tierra

Onde: Sesc Vila Mariana
Quando: quarta e quinta, às 21h; 18/9 e 19/9
Ingressos: De R$ 21 a R$ 70
Classificação: 16 anos

Sombras, Por Supuesto

Onde: Sesc Belenzinho
Quando: quarta e quinta, às 21h30; 18/9 e 19/9 Ingressos: De R$ 18 a R$ 60
Classificação: 14 anos

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