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Os 65 anos do Teatro Oficina – A volta do exílio e o renascimento

Após o retorno ao Brasil, Zé Celso e o Oficina interrompem as atividades e voltam só década de 1990, no espaço que ocupam projetado por Lina Bo Bardi

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 17 jan 2023, 11h50 - Publicado em 17 jan 2023, 10h56

Se o desejo da repressão era minar totalmente o Teatro Oficina, o exílio foi um tiro que saiu pela culatra. Naqueles anos, a companhia permaneceu unida. Com ajuda de ninguém menos que Paulo Freire, que tinha um importante contato no Ministério da Educação de Portugal, conseguiram viver todos juntos numa grande residência, que virou quase um centro de acolhimento, abrigando artistas de diferentes países.

Lá, acompanharam outra revolução: a Revolução dos Cravos, com a luta pelo fim do regime salazarista (1933 a 1974), governo de inspiração fascista comandado por António Salazar. “Nós começamos fazendo Galileu Galilei no Teatro São Luiz, em Lisboa. Até eu fiz como ator. Trabalhamos na televisão, fizemos vários documentários e dois filmes. Foram anos muito legais, aproveitamos muito”, conta Zé Celso.

Na hora de voltar para casa, o momento parecia apontar para uma situação mais calma após tanta brutalidade praticada pelo Estado. Zé conta que havia uma desconfiança da classe artística. “Pensavam que eu tinha enlouquecido.” Há um hiato, uma pausa na montagem de espetáculos do Oficina entre o retorno ao Brasil até 1991, quando montam o espetáculo As Boas, de Jean Genet.

Confira a primeira parte do especial sobre os 65 anos do Teatro Oficina clicando aqui.

O diretor Zé Celso falando em um microfone rodeado de pessoas que o escutam.
Encontro da Universidade Antropófoga, prática de trocas de saberes ligados às artes cênicas no Teatro Oficina, 2015 (Jennifer Glass/arquivo)

A partir de 1979, o prédio da Jaceguai ganha outros usos e se transforma em cantina, cabaré, sala de exibição de filmes e espaço de discussão e de leituras teatrais: “O Oficina ficou um tempo sem fazer peças, mas ele não deixou de existir. Durante o exílio do Zé, quem tocava o Oficina era a Zuria [Marinita Fagundes da Rocha], que se tornou uma das fundadoras da Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona. Nesse tempo, o Oficina foi comandado por essa comunidade de nordestinos que viviam no Bixiga, que incluiu o artista popular Surubim Feliciano da Paixão, além de Edgard Ferreira, parceiro de Jackson do Pandeiro, e Sandy Celeste, a Billie Holyday do Sertão. Houve um hiato durante a ditadura, não houve peças, mas o processo de trabalho continuou”, afirma Beto Eiras, assistente de Zé Celso.

Surubim foi uma figura-chave também no processo criativo do teatro. Compôs a famosa “Tupi or not Tupi” para a peça Ham-let.

Atores reunidos no palco.
Montagem do Roda Viva em 2019 (Jennifer Glass/arquivo)

Integrar artistas com percursos, de diferentes regiões, é um atributo do grupo desde a sua formação e que se mantém até hoje, continua Beto: “O Oficina sempre foi formado por uma legião de pessoas. Sua história é de aglutinar gerações e espíritos do que estava sendo pensado ao longo do tempo. O Zé foi a pessoa que centralizou, mas é sempre um número muito grande de pessoas envolvidas nos trabalhos, nas peças. Agora mesmo, vamos entrar em cartaz com a peça Mutação de Apoteose, com direção de Camila Mota, que tem quase 100 pessoas trabalhando. Algumas ficam e outras vão embora. Temos uma associação e o número de associados é gigantesco.”

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O Teatro virou rua

Em 1993 ocorre o tal renascimento do grupo, um dos momentos mais importantes com a inauguração do teatro projetado pela lendária Lino Bo Bardi, em 1980. O espaço teve três configurações. desde que foi ocupado pelo grupo. Na última delas, a proposta era que o teatro fosse uma continuação da rua, dando espaço a manifestações populares. O palco se transformou num enorme corredor, com grandes andaimes dos dois lados, permitindo o público assistir de alturas e ângulos diversos. Aos mais tímidos, que receiam a interação com os atores, os andares mais altos se tornam um tipo de refúgio. Há uma enorme janela de vidro em seu lado esquerdo, que permite a entrada de luz natural, e onde se instala a banda durante os espetáculos.

O longo corredor, a janela, faziam parte dos planos de Zé. Havia a sensação de que o teatro causava claustrofobia. Além disso, durante os anos da ditadura, era prática recorrente a polícia invadir o espaço. Não havia, entretanto, uma saída, o teatro era fechado em si. Os atores não tinham para onde fugir. E por isso terminavam espancados. Todo o entorno do teatro era propriedade de Silvio Santos. Por muito tempo, Zé insistiu para que pudessem criar uma abertura na parte final do prédio. O pedido foi finalmente aceito. Zé, então, recorreu a Lina, e escutou o seguinte: “Eu sou arquiteta, não posso atravessar paredes, só posso derrubá-las.” Foi o que ela fez. A inauguração do novo espaço foi presenteada com a estreia de Ham-let, uma adaptação da tragédia de William Shakespeare, com Marcelo Drummond – que entrou no Oficina em 1986 -, interpretando o príncipe da Dinamarca.

Pessoas rodeiam os muros do terreno ao lado do teatro oficina.
Manifestação pela liberação do Parque Bixiga, 2017 (Jennifer Glass/arquivo)

Zé Celso x Silvio Santos

A guerra com Silvio Santos vem de longa data e passou dos 40 anos. Um resumo da ópera: Santos queria construir três torres residenciais de 100 metros de altura no espaço aberto ao lado do Oficina. Além de prejudicar a visão do Oficina, um edifício tombado, o projeto descaracterizaria o bairro do Bixiga, e promoveria uma gentrificação com o aumento dos preços. A valorização do território deveria ser feita com mais artes e espaços de lazer, e sem expulsar os moradores do bairro, acredita Zé.

Havia também o plano de Lina para o terreno de 11 mil m² ao lado do Oficina: construir um imenso parque. Após anos de disputas judiciais, finalmente em 2020, a disputa chegou numa etapa importante, mas não conclusiva. Um projeto de lei (PL 805/2017), pela implementação do parque, foi aprovado numa segunda votação na Câmara Municipal de São Paulo, mas terminou vetado pelo então prefeito em exercício Eduardo Tuma.

“Eu sou arquiteta, não posso atravessar paredes, só posso derrubá-las”

Lina Bo Bardi
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A construção, que visava mil apartamentos e mil vagas de garagem, colocaria em risco não apenas o Oficina, mas poderia causar danos ambientais ao atingir o rio que passa por baixo do terreno. Em 2022, uma decisão judicial impediu a construção das torres. Outro projeto de lei, de autoria do então vereador Eduardo Suplicy, segue em tramitação. Zé se mostra otimista e acredita que nos próximos anos o parque, enfim, sairá do papel.

Mesmo três décadas após ter sido construído, o Teatro Oficina continua sendo um dos espaços mais ousados, não apenas em São Paulo, mas além das fronteiras do país. Em 2015, a obra criada por Lina deu ao Teatro Oficina o status de melhor teatro do mundo, pelo jornal britânico The Guardian.

Foto das janelas do Teatro oficina, no canto inferior esquerdo é possível ver uma mulher.
Interior do Teatro Oficina com vista para o futuro Parque Bixiga (Jennifer Glass/arquivo)

Um novo momento

No dia 23 de dezembro, como em todos os anos desde o assassinato de seu irmão, Luís Antônio, em 1987, o Oficina apresenta um espetáculo em sua homenagem. No último ano foi um ensaio aberto de Mutação de Apoteose, dirigida por Camila Mota. Além disso, todos os anos, antes da apresentação, o grupo canta a canção O Amor, poema de Vladimir Maiakovski, musicado por Caetano Veloso e interpretado por Gal Costa. Dessa vez, foi também um presente a Gal, morta em novembro.

Então, sem aviso, Zé canta:

“Talvez, quiçá, um dia, pela alameda do talvez, quem sabe, um dia
por uma alameda do zoológico, ela também chegará, ela que também amava os animais, entrará sorridente assim como está, na foto sobre a mesa.”

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O espetáculo começa sempre às 14h30, horário em que Luís foi dado como morto. Zé recorda a data: “Estava na minha casa para o Natal, em Araraquara, esperando ele. Ele não vinha. Ele sempre chegava antes de mim. Aí eu liguei para um dos atores da Globo, para Marília Pêra, e me disseram que ele tinha saído, tinha ido para Araraquara. De repente, eu ligo para o apartamento dele, um cara atende e diz: ‘essa pessoa foi assassinada’. Eu dei um berro: ‘Luiz foi assassinado’. Minha prima veio comigo para São Paulo. Teve uma cerimônia no teatro de Ipanema, onde ele estava montando um musical brasileiro, a última peça dele. Ele foi morto com 107 facadas. Depois disso, eu não queria mais fazer teatro. Eu tinha desistido.”

Por uma triste coincidência, Luís estava montando a ópera Lulu, de Frank Wedekind, sobre uma jovem resgatada das ruas que consegue alcançar uma boa educação e uma boa vida, mas termina novamente nas ruas, tendo que se prostituir. A personagem é, então, assassinada a facadas por Jack, o Estripador.

No vácuo deixado pelo irmão, Zé montou Lulu como uma espécie de catarse e de luto. “Eu fiz o Jack Estripador e dei as 107 facadas. Chovia muito nesse dia, estava só o elenco do Oficina. Acredito que se eu não tivesse feito isso, eu não teria conseguido mais viver.”

“Eu fiz o Jack Estripador e dei as 107 facadas. Chovia muito nesse dia, estava só o elenco do Oficina. Acredito que se eu não tivesse feito isso, eu não teria conseguido mais viver”

Zé Celso

O natal se aproxima, Zé Celso me liga

Tem dados que não podem ficar de fora sobre a história do Oficina. Ele lê uma lista em que anotou algumas circunstâncias determinantes para o que o grupo é hoje. A primeira, ele diz, é a forte interação com o público durante os espetáculos. Quem já assistiu a alguma peça, sabe que os atores convidam aleatoriamente alguns espectadores para fazer parte da cena. Às vezes nem tão aleatoriamente. Caetano Veloso que o diga: foi levado para o centro da passarela e ficou completamente nu na montagem de As Bacantes, em 1996.

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O diretor Zé Celso aparece a direita com as mãos levantadas, atrás dele uma plateia sentada.
“Triste é o país que precisa de heróis”. Zé durante o espetáculo Roda Viva, no Rio de Janeiro, 2019 (Jennifer Glass/arquivo)

Assim como tantos outros aspectos que marcam a identidade do Oficina, o diálogo com o público nasceu em Roda Viva. “O coro de Roda Viva pegava as pessoas e levava para pista. Começou como uma coisa de não somente se endereçar ao público, mas de trazer o povo para pista para contracenar. Diziam que era uma abordagem agressiva, mas porque ninguém estava acostumado com isso. Aos poucos, foi ficando mais delicada.”

Composição com duas fotos, uma de atores performando vistos de frente e a seguinte dos atores vistos de cima.
Durante espetáculo Roda Viva (Jennifer Glass/arquivo)

Outro fator que salta aos olhos é a questão com a sexualidade e a nudez. Em quase todas as peças, a nudez e o erotismo estão presentes. “A sexualidade é uma coisa extremamente importante para nós. Isso começou no Roda Viva. Era tão maluco que os atores do coro até transavam antes de entrar em cena.”

Há uma justificativa para que esse seja traço cultivado na personalidade do grupo e diz respeito, justamente, à relação com o público: “O ator deve trazer uma libido muito forte, uma presença sexual mesmo, muito forte, muito atrativa do ponto de vista sexual para manter a relação com o público também. Ao nível erótico.”

4 atores se apresentam.
Espetáculo “As Bacantes”, 2017 (Jennifer Glass/arquivo)

Além dessas, há outro atributo, possivelmente o mais importante de todos: valorizar o aqui e agora.

“Em 1968 foi quase como uma iluminação viver o aqui e agora. Assim como teve o covid que pegou o mundo inteiro, em 1968, de repente, as pessoas descobriram que não poderiam viver esperando o futuro, então deixaram de ser messiânicas. Descobriram que a coisa acontecia no aqui agora.”

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Isso se espelhava até mesmo nas escolhas do repertório do grupo. “Todas as peças que são criadas, procuramos entender que se a peça tem relevância com o contexto em que está. Você não escolhe uma peça simplesmente por escolher, você escolhe por perceber que aquela peça dialoga com aquele momento.”

Na foto, o diretor Zé Celso atuando, atrás dele é possível ver portas claras onde o rosto dele é projetado.
Apresentação de “Mistérios Gozosos”, 2015 (Jennifer Glass/arquivo)

Pergunto qual momento foi mais especial na história do Oficina e Zé responde sem pestanejar: “o presente”. Ainda que o contexto atual tenha sido marcado por dificuldades de diferentes naturezas: política, social e financeira. Em 2016, o grupo perdeu o patrocínio da Petrobrás.

“O ator deve trazer uma libido muito forte, uma presença sexual mesmo, muito forte, muito atrativa do ponto de vista sexual para manter a relação com o público também. Ao nível erótico”

Zé Celso

O Oficina é um grande patrimônio histórico e cultural do país, mas conseguir mantê-lo vivo e com as contas em dia são lutas permanentes para o grupo.

Zé considera que a companhia sobreviveu a duas ditaduras, aquela que nasceu em 1964 e outra em 2019, durante o governo de Jair Bolsonaro, com extinção do Ministério da Cultura e os ataques recorrentes aos artistas. No entanto, acredita que foi no segundo momento que a cultura correu mais riscos. “Na segunda ditadura nós sobrevivemos graças ao Sesc. Na primeira, a gente rebolou muito, conseguimos liberar os teatros pela iniciativa da Cacilda, mas sempre sendo perseguidos e interrompidos. O que fez nós continuarmos foi a revolução de voltar a querer.”

Composição com 4 fotos.
Elenco caracterizado para o espetáculo “Macumba Antropófaga”, 2017 (Jennifer Glass/arquivo)

 

Neste ano, Zé Celso pretende adaptar a obra A Queda do Céu, de Bruce Albert e Davi Kopenawa Yanomami, que discute a destruição da Floresta Amazônica e de seus povos. Um desafio gigantesco, ele diz, já que se trata de um livro de mais de 700 páginas.

Quando fala do livro, é inevitável se lembrar de Luís: “Nesse livro, ele recomenda você esquecer completamente dos mortos. Queimar todas as coisas, as roupas da pessoa. Ela deve ficar só na sua memória. Você não deixa nada dela, não comemora nada, nada, nada. É uma sabedoria indígena, mas eu não tenho essa formação. Apesar de a minha avó paterna ser indígena, eu sinto muita saudade dele (do Luís), então preciso fazer alguma coisa nesse dia. Porque fico muito triste.”

Zé Celso parece ler um roteiro.
(Jennifer Glass/arquivo)
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