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Os 65 anos do Teatro Oficina – Memórias da Ditadura

Em 2023, o Oficina se consagra como a companhia teatral mais antiga do Brasil. Seu fundador, Zé Celso, fala sobre os primeiros anos e o legado do grupo

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 17 jan 2023, 10h57 - Publicado em 16 jan 2023, 12h24
O rei da vela, Teatro Oficina
 (Teatro Oficina/arquivo)
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José Celso Martinez Corrêa, 85, guarda uma saudade doída no peito. Sempre antes do Natal, um período que deveria encher de felicidade e esperança de dias melhores, ele recorda o assassinato do irmão, Luís Antônio Martinez Corrêa. É algo inevitável, já que Luís foi morto em 23 de dezembro de 1987. Com a fala pausada, o olhar baixo, Luís lhe vem à mente em meio às suas lembranças do Teatro Oficina, um verdadeiro legado construído por Zé Celso, como é conhecido.

A tristeza repentina do diretor e fundador do Oficina destoa da disposição com a qual iniciou a entrevista – realizada no apagar das luzes de 2022. Nem tudo é motivo de tristeza. Ao contrário: em 2023, o Teatro Oficina completa seu 65º aniversário, uma jornada ininterrupta de peças e atividades desde o momento em que foi criado, em 1958. Trata-se do grupo teatral mais longevo do Brasil. Sobreviveu a uma ditadura militar, que incluiu incontáveis ataques, censura, um incêndio criminoso, sem falar no esvaziamento dos recursos destinados à cultura, especialmente nos últimos anos.

Conhecer a história do Oficina implica em mergulhar na trajetória de seu criador. Zé também é um sobrevivente do período militar. Foi preso e torturado e precisou se exilar em Portugal durante quatro anos. Desde as décadas de 1960 e 1970, Zé e o Teatro Oficina chamaram atenção pela revolução que fizeram no modo de encenar, o estilo arrojado, o sarcasmo, a linguagem contestadora, a nudez dos artistas e a forte interação com o público.

Teatro Oficina
Zé Celso no Oficina, em processo de construção do Teatro projetado por Lina Bo Bardi (Teatro Oficina/arquivo)

Sonhos do menino Zé

Assim como na história de tantos outros artistas, a semente das artes foi plantada na infância de Zé, no quintal de sua casa. Representar outra realidade fazia parte de suas brincadeiras. “Na minha casa, em Araraquara, tinha um terreno enorme de barro. Ali, eu brincava de muitas coisas: de fazer teatro, cinema. Eu pegava uma lâmpada e enfiava numa caixa de sapato e projetava um filminho, de coisas que eu desenhava. No quintal tinha uma espécie de palco e eu fazia peças ali, peças que não queriam dizer nada. Eu entrava vestido de mulher e dizia ‘Joana, traga meu cigarro’ e a peça acabava [ele ri]. Devia ter uns 10 anos.”

Seu pai, o professor e político Jorge Borges, levava o menino Zé nos teatros antigos. Ele próprio era frequentador assíduo nos tempos de Procópio Ferreira e Dercy Gonçalves.

O batismo teatral de Zé aconteceu muito mais tarde. Por pouco, ele não seguiu uma rota alternativa antes de se tornar personagem fundamental na memória do teatro brasileiro. Como muitos jovens da classe média de sua geração, Zé foi convencido a escolher uma das principais e prestigiadas carreiras. Nascido em Araraquara, mudou-se para São Paulo para estudar Direito na USP. “O curso de Direito era o seguinte: trezentos alunos na sala, professores péssimos que participaram do golpe de 1964 e aulas insuportáveis que davam um sono enorme. A gente colocava óculos escuros e passava a maior parte do tempo dormindo.”

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Teatro Oficina
(Teatro Oficina/arquivo)

Foi durante os anos de faculdade que Zé e outros entusiastas criaram um laboratório teatral. Em agosto de 1958, nasceu a Companhia Teatro Oficina. Renato Borghi, Etty Fraser, Fauzi Arap, Ronaldo Daniel e Amir Haddad estavam entre os fundadores. Havia um grande mestre que inspirava aquela empreitada: o ator e pedagogo russo Constantin Stanislavski, inventor do método de atuação mais conhecido e replicado nas artes cênicas.

“No quintal tinha uma espécie de palco e eu fazia peças ali, peças que não queriam dizer nada. Eu entrava vestido de mulher e dizia ‘Joana, traga meu cigarro’ e a peça acabava [ele ri]. Devia ter uns 10 anos”

Zé Celso

No início, o fundamento do Oficina era dominar as doutrinas deixadas por Stanislavski. Firmar um grupo dedicado a uma atuação realista. Não levou muito tempo para que esse propósito fosse completamente transfigurado. Isso porque a situação do país e a violência do Estado exigiram uma resposta a altura. Apressadamente, o Oficina foi se tornando cada vez mais politizado. Queriam uma revolução.

Naquele primeiro momento, Zé não se identificava como ator, tampouco como diretor. Era um jovem com muitos interesses. Escrever talvez fosse o maior deles. Sua inspiração surgia com os pequenos acidentes do cotidiano. Como aconteceu com a primeira peça de sua autoria. “Em Araraquara, eu consegui um papagaio muito bonito, o chamava de Imperador do Espaço. Estava empinando ele no Largo da Câmara. Aí o papagaio subiu, foi maravilhoso, mas de repente ele rompeu e foi parar longe. Fui atrás dele e o encontrei numa rua muito distante, todo molhado. Deixei ele secando no quintal de casa e fui dormir. No dia seguinte, quando acordei, ele estava praticamente destruído pelo forte sol de Araraquara. Então veio um vento forte que levou ele embora. No mesmo instante, corri para o violão e cantei. ‘Hoje vou fugir com o vento, vou até o firmamento. Vou ver a terra brilhar, a brilhar. Vou me lançar por esse espaço a ventar, a ventar.’ Compus uma música enorme e a partir dela, escrevi uma peça. E falei: ‘é isso que eu quero fazer’.”

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A peça, escrita em 40 minutos, foi apresentada ao resto do grupo. Bem recebida, decidiram montá-la. Foi então que a chamada Vento Forte para um Papagaio Subir estreou na Rua Jaceguai, nº 520, no Teatro Novos Comediantes, mesmo espaço ocupado pelo Oficina atualmente. “A peça foi exibida por apenas três dias, mas foram três dias absolutamente lotados e mágicos. Não sei o que aconteceu. Tanto que Décio de Almeida Prado, que era o grande crítico da época, escreveu uma crítica maravilhosa. Fomos de madrugada num restaurante, próximo ao jornal O Estado de São Paulo, e lemos juntos a crítica. Então recebemos um incentivo enorme para continuar trabalhando.”

Teatro Oficina
(Teatro Oficina/arquivo)

Repetiram o sucesso com a segunda peça, A Incubadeira, e com ela receberam o primeiro salário como artistas. Nessa empreitada, participaram do consagrado Festival de Santos, realizado pela TV Manchete, um marco para que Zé decidisse se fixar na profissão. “Era algo grandioso, parecia o Festival de Cannes. Foram convidados artistas do Brasil todo. Foi aí que conheci o Cacá Diegues e o Arnaldo Jabor.

A Incubadeira levou os principais prêmios. “Havia um monte de aplausos. Lembro que a Pagu [a escritora e ativista Patrícia Rehder Galvão] já estava bem velha e muito bêbada. Na premiação, ela montou em mim como se fosse um bicho de preguiça, com aquele bafo de álcool, e não me soltava mais. Senti que ela me deu um passe naquele dia. Senti que, realmente, eu estava certo naquilo que tinha que fazer.”

Com o reconhecimento, foram se profissionalizando. Em 1961, Zé teve a primeira experiência como diretor do Oficina, na montagem da peça A Vida Impressa em Dólar, de Clifford Odets, na qual colocaram em prática o método de Stanislavski. “Na época, não se admitia um espetáculo que não fosse realista.”

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Teatro Oficina
(Teatro Oficina/arquivo)

O golpe e a transformação do Oficina

Nos bastidores do espetáculo, o grupo se transmutava. Foi nesse período que o ator Fauzi Arap, integrante do Oficina, começou suas experimentações com o LSD. Inicialmente, com propósito terapêutico, mas que, em seguida, tinha como objetivo alcançar outro estado de consciência durante as peças. Anos mais tarde, a partir da montagem do espetáculo Roda Viva, de Chico Buarque, o uso de substâncias psicoativas passou a fazer parte da rotina do grupo, confessa Zé. “Durante muito tempo, era comum fazer espetáculos com mescalina, com ácido lisérgico. Por exemplo, Três Irmãs foi toda montada com mescalina. As drogas tinham muita importância. Era um ritual em que você sentia todas as subjetividades. As pessoas ficavam super ligadas. É uma coisa que ia além do simplesmente social, uma comunicação não só da percepção consciente, mas também da percepção daquilo que as palavras não conseguem alcançar.”

A experiência era consumada mesmo quando dirigia as montagens.“Eu sempre dirigi as coisas muito louco e gosto muito desse estado. Hoje em dia menos, porque me tornei cardíaco. Então tive que dar uma parada.”

Nos primeiros anos, marcados pela influência de Stanislavski, montaram Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, e Todo Anjo é Terrível, de Thomas Wolfe. Também as peças russas Pequenos Burgueses e Os Inimigos, ambas de Máximo Gorki. A pleno vapor e sucesso, levaram uma rasteira do contexto político-social. Em 1964, prestes a estrear Andorra, de Max Frisch, ocorreu o golpe de Estado.

Teatro Oficina
(Teatro Oficina/arquivo)
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“Ninguém estava esperando. Nós estávamos com essa peça em cartaz fazendo o maior sucesso e de repente ocorre um golpe de estado. Foi um grande choque para nós porque eles estavam saindo à caça de comunistas, então tivemos que fugir”, ele lembra. “A Ítala Nandi ficou tomando conta do teatro e montou a peça boulevard Toda Donzela tem um Pai que é uma Fera, de Gláucio Gil. A montagem fez muito sucesso e deu dinheiro para dar algum fôlego aos artistas, não só da companhia, como o pessoal do Teatro Arena que também teve que se exilar.”

Zé recorda que, ainda no início da ditadura, houve uma tentativa de paralisar a cena teatral. “A Cacilda Becker convocou toda a classe teatral e foi tirar sua irmã, a atriz Cleyde Yáconis da cadeia. Ela chamou Maria Della Costa. As duas alugaram um Rolls Royce, chamaram a imprensa e foram vestidas elegantemente até o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social], em São Paulo, e fez uma fala muito forte. Ela conseguiu não só libertar a Cleyde, como conseguiu liberar o teatro de novo, que tinha sido interrompido com o golpe.”

“Havia um monte de aplausos. Lembro que a Pagu já estava bem velha e muito bêbada. Na premiação, ela montou em mim como se fosse um bicho de preguiça, com aquele bafo de álcool, e não me soltava mais. Senti que ela me deu um passe naquele dia”

Zé Celso

Um ano antes de ser decretado o AI-5, o Oficina descobriu um autor que foi responsável pela sua completa transformação. A partir da indicação do filósofo Luiz Carlos Maciel, Zé conheceu a peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, que o deixou extasiado. Pouco antes da montagem, o teatro havia sido incendiado. Em menos de um ano, outro edifício foi construído no lugar com apoio da classe teatral. Assim, renasceu.

“Eu estava muito inspirado pelo Brecht [dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht]. O texto O Rei da Vela nada tinha a ver com o realismo. Quando a peça estreou foi um sucesso estrondoso, nunca ninguém tinha visto uma coisa igual. O primeiro ato era um circo. No segundo era teatro de revista, tinha um telão da Baía de Guanabara. O terceiro ato era a tragédia. Então tinha duas cortinas vermelhas e um bonecão enorme que tinha um caralho imenso que levantava o pau e fuzilava. Era uma montagem toda melodramática, mas muito estilizada. Foi um escândalo. Quando abaixava a cortina, a gente não voltava ao palco para agradecer nessa época. Aí o pessoal gritava ‘Onde é que está esse Oswald de Andrade [morto em 1954]? Vou levar ele para cadeia, vai ser preso…’”

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Teatro Oficina
Zé Celso no filme “Rei da Vela” (Teatro Oficina/arquivo)

Roda vida, roda gigante…

A peça que veio no ano seguinte, em 1968, sacramentou a identidade do Oficina. O impacto de Roda Viva foi ainda maior e fez com o que grupo se tornasse um grande inimigo da ditadura militar. A apresentação foi somente autorizada por um descuido dos censores. “Eles foram ver a peça durante o ensaio, mas todo mundo só olhava para o Chico Buarque, que era muito lindo. Olhavam para os olhos verdes dele. Aí liberaram, mas logo em seguida veio aquele escândalo que terminou com a destruição de tudo em Porto Alegre.”

Antes mesmo de irem para Porto Alegre, a peça fez uma curta temporada em São Paulo. Num dos dias de espetáculo, o Comando de Caça aos Comunistas esperou o público ir embora, invadiu o teatro, destruiu os camarins e espancou os artistas. Uma das vítimas desse ataque foi a atriz Marília Pêra. Em Porto Alegre, a reação militar foi ainda mais violenta. “Eu montei a peça em Porto Alegre e voltei para São Paulo. No dia seguinte, fiquei sabendo que invadiram o hotel onde estava o elenco, bateram nos artistas, e sequestraram dois atores. Depois colocaram todo mundo no ônibus de volta para São Paulo. Parecia que estavam voltando de uma guerra: todo mundo sangrando e ferido. Aí eu falei ‘temos que mudar completamente nossa estratégia porque aí vem coisa ruim’.”

“Tinha duas cortinas vermelhas e um bonecão enorme que tinha um caralho imenso que levantava o pau e fuzilava. Era uma montagem toda melodramática, mas muito estilizada. Foi um escândalo, quando abaixava a cortina a gente não voltava ao palco para agradecer nessa época. Aí o pessoal gritava ‘Onde é que está esse Oswald de Andrade? Vou levar ele para cadeia, vai ser preso…’”

Zé Celso
Teatro Oficina
(Teatro Oficina/arquivo)

Diante da censura, o silêncio

O Oficina se manteve firme enquanto pôde. Fizeram roteiros ainda contestadores, mas que despertaram menos atenção da ditadura, como Galileu, Galilei, Na Selva das Cidades, Don Juan e Um Beijo no Asfalto. “Durante a ditadura, as pessoas ficaram muito abatidas. Ninguém esperava e foi muito violento. Aí a gente se reuniu e decidimos mudar o plano. A gente via que o povo estava muito de cabeça baixa. Resolvemos que nosso objetivo deveria ajudar as pessoas voltarem a querer. Queríamos uma revolição – um termo que demos para “uma revolução da vontade”. E em 1972 escrevemos juntos uma peça, Gracias, Señor. Nós excursionamos com ela pelo Brasil.”

A tática era fazer a peça a maior parte do tempo em silêncio para enganar a censura. “Começamos a fazer vários trabalhos em cidades pequenas, já testando o silêncio. Encontrando um jeito de se exprimir que não precisasse de palavras, mas de uma forma que o público nos entendesse e conseguisse interagir conosco.”

Teatro Oficina
(Teatro Oficina/arquivo)

Estrearam, finalmente, no Rio de Janeiro. Em questão de dias, tiraram ela da programação. Parecia que até mesmo o silêncio preocupava os militares. “Estreamos a peça e logo fui pro Porto Alegre fazer uma conferência. Quando voltei eles tinham tirado a peça de cartaz. Aí começou uma briga para peça voltar, que acabou voltando, mas com 40 censores assistindo. O mais curioso é que eles não conseguiram explicar como todo o público conseguia entender o que estava acontecendo e entrar na cena, menos os censores. Eles queriam descobrir que tática a gente usava. Saiu até nos jornais ‘Como eles agem’, como se a gente tivesse recebido da China uma maneira de atuar. Era muito poderoso o silêncio.”

Em 1974, não havia mais para onde fugir. O protagonista de Gracias, Señor, Henrique Maia Nurmberger havia sido sequestrado e torturado. Durante muito tempo, não sabiam qual tinha sido seu destino. Zé e os atores do Oficina foram obrigados a buscar o exílio. Foram para Portugal e conseguiram se manter juntos, ainda produzindo para teatro, cinema e TV. Retornaram apenas em 1978, com a vontade renovada. A “revolição”, para o Oficina, já estava acontecendo.

Apenas quando voltou para o Brasil, Zé soube do paradeiro de Henrique. “Quando voltei do exílio, soube que ele foi internado no hospital psiquiátrico Philippe Pinel. Eu fui visitá-lo e era como se ele não existisse mais por dentro. Ele tinha sido lobotomizado. E o primeiro ato da peça Gracias, Señor era justamente sobre isso.”

Teatro Oficina
José Wilker interpretando Abelardo II em “Rei da Vela” (Teatro Oficina/arquivo)

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Os 65 anos do Teatro Oficina: A volta do exílio e o renascimento

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