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Lilia Schwarcz, Brasil Futuro e Salvador

Historiadora fala sobre a exposição itinerante que ocupa, até novembro, o Solar do Ferrão, no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador

Por João Victor Guimarães
Atualizado em 9 set 2023, 09h21 - Publicado em 8 set 2023, 09h25

Vocês precisam fazer coisas que fiquem!”, disse a historiadora, antropóloga e curadora Lilia Schwarcz após a terceira vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva, em novembro de 2022. Ela se referia à montagem de uma exposição como resposta à escolha da nação. Uma escolha pela democracia. Mas uma mostra estará à altura dessa escolha? Acredita-se que isso seja possível? Se sim, como? Por quê?

A democracia, como declara Lilia na entrevista a seguir, é incompleta. Quiçá até movida pela incompletude. Temos então um possível paralelo com uma exposição. Mas há outros necessários. Entre eles, o mais importante: o povo, essa deidade, às vezes lida de maneira tão exótica quanto pictórica com o cânone das artes plásticas brasileiras. Dada sua carótida elitista, como o desafio oferecido por Lilia suportaria uma tendência muito além do “popular”?

Esse é o grande tema de Brasil Futuro: as formas da democracia. Com mais de 500 obras de artistas que se apoiam em diversos suportes e técnicas, a mostra promete se tornar mais negra, indígena, LGBTQIAPN+, PCD e o que mais for necessário para consumar-se democrática. Iniciar-se no Centro-Oeste e ir ao Norte e Nordeste do Brasil, fugindo do eixo Rio-São Paulo, é um passo importante, mas por si só não torna nada mais democrático e/ou decolonial. O que o fará, portanto? 

Fotos da exposição
(Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

Aberta ao público no dia 2 de janeiro no Museu da República, em Brasília, Brasil Futuro foi visitada pelo presidente Lula e então iniciou sua trajetória itinerante. Passou pela Casa das Onze Janelas, em Belém, onde alcançou mais de 27 mil pessoas, e agora se encontra no Solar do Ferrão, em Salvador, onde fica até novembro. Na Bahia, nós conversamos com Lilia, confira:

Lilia, se você tivesse que apresentar a exposição Brasil Futuro: as formas da democracia para quem ainda não a viu, como você a apresentaria?
Essa foi uma exposição da urgência. Quando Lula venceu a eleição, conversei com Márcio Tavares, atual Secretário de Cultura, e falei: ‘Olha, vocês precisam fazer coisas que fiquem na memória.’ Então fizemos uma exposição imensa em quinze dias, num museu sem paredes, maravilhoso, o icônico Museu da República. Pensamos que, após quatro anos de governo do Jair Bolsonaro, o grande tema seria democracia. Democracia não como projeto completo, mas justamente como um projeto por definição incompleto, um processo, porque direitos a gente nunca acaba de constituir. E foi assim que surgiu a ideia da exposição. 

Fotos da exposição
(Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

Por que uma exposição?
Porque os artistas tiveram e têm um papel fundamental na denúncia, na delação, mas no afeto também. É o afeto que nos une. E a exposição foi abraçada por uma série de artistas, de curadores e galerias. Nós não tínhamos tempo de recorrer aos museus porque estavam fechando para o Natal. E a ideia é que a cada vez que a exposição pousar para uma nova versão, ela se abra para curadores e artistas locais. Nesta versão somos dez curadores: Márcio Tavares, Rogério Carvalho, Paulo Vieira, Adriana Cravo, Daniel Rangel, Vilma Santos, José Eduardo Santos (do Acervo da Laje), Lázaro Roberto e José Carlos Ferreira (do Arquivo Afro Fotográfico – ZUMVÍ), além de mim.

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O Acervo da Laje e o ZUMVÍ são parte da curadoria aqui em Salvador e pensaram conosco como as obras podiam dialogar com a estrutura da exposição. O núcleo “Retomar os símbolos” é uma discussão sobre o que foram esses quatro anos de sequestro dos nossos símbolos, como a gente precisa retomá-los a partir dos nossos valores, das nossas convicções e lutas por direitos. Uma outra sessão se chama “Descolonizar” e trata justamente desses processos com mais demandas da população de LGBTQIA+, dos povos indígenas, dos negros, quilombolas, das pessoas com deficiências. Então ela dialoga com essa ideia da incompletude. O núcleo “Somos nós” é pra mostrar essa beleza, né? Somos nós. Há um outro que a gente abriu aqui em Salvador. Você vai entender o porquê. Se chama “Tudo é dádiva”. 

O Brasil é um país feito de contradições. Tanto que Tom Jobim dizia que o Brasil não é para principiantes. A grande contradição da sociedade brasileira é a escravidão.

Fotos da exposição
(Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

Agora montada, como você observa a relação da exposição Brasil Futuro: as formas da democracia com o Solar do Ferrão? E com o Pelourinho?
Olha, eu logo vibrei com a possibilidade de fazer a exposição no Solar do Ferrão, sobretudo por conta dessa forma colonial do Solar, com sua forma grandiosa, com grandes colunas, com pedras de muito peso, que lembram muito o domínio europeu em Salvador.

Então uma mostra que se pretende decolonial num lugar colonial como esse, tem grande importância. Além de que, pelas informações da Adriana Cravo [Diretora do Centro Cultural Solar do Ferrão] e dos especialistas em museus aqui de Salvador, é a primeira vez que o Solar recebe uma exposição nos seus três andares mantendo-os em diálogo, inclusive com sua coleção própria. É uma releitura também decolonial porque o acervo dos santos se encontra em diálogos com ibejis. Há dois anjos que abençoam a Djanira… Então aqui há uma leitura tensionada de todas essas religiões, de todos esses credos, que ora convivem de forma sincrética, ora não, como nesses quatro anos que passaram.

Nós também colocamos um quadro do Bida olhando para o Pelourinho. Ele é um artista de lá, do lugar dos Filhos de Gandhi, de onde passam as mães de santo, as famosas baianas… Passa essa vida toda de Salvador, essa vida popular que há de dialogar, de entrar, de propor, de mudar a composição da exposição que já saiu muito alterada com as obras dos ZUMVÍ, do Acervo da Laje e dos museus do IPAC que, sobretudo na figura do Daniel Rangel, nos ajudou tão de perto. Acho que essa conversa ficou muito bem entabulada com Salvador, com o Solar do Ferrão e com o Pelourinho.

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Fotos da exposição
(Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

Se tratando de um solar, são muitas as janelas. Que posição elas assumiram na exposição?
Nós tentamos ao máximo tomar partido das janelas, tanto no sentido da luz como no sentido da moldura, mesmo. Então pusemos obras aqui dialogando com o Pelourinho, tentando fazer com que o externo seja interno e o interno seja externo. A paisagem que circunda o Solar do Ferrão é incorporada na exposição. Esse diálogo já foi muito claro na exposição em Belém, na Casa das 11 Janelas,  e agora no Solar do Ferrão com janelas que, de um lado dialogam com o movimento da população, dos vendedores, das pessoas que circulam, e do outro lado com essa paisagem de Salvador com colinas, igrejas, bandeirolas. O que acontece é que esse entorno vira uma parte central e muito fundamental para a exposição.

Mesmo estando no Pelourinho, as instituições museais ainda são símbolos de exclusão. Como você pensa o convite ao público para romper com essa distância?
O pessoal do Acervo da Laje e do ZUMVÍ disseram que nesse espaço nunca teve uma arte negra baiana contemporânea e periférica. Lázaro e Zé Carlos me disseram que na história da fotografia de Salvador, durante muito tempo, as fotos do ZUMVÍ ficaram de lado, não estavam. Então chamá-los para fazer a curadoria de maneira a eles interferirem em todos os espaços é uma questão política, na minha opinião, muito forte. É essa ideia de ‘olha, museus são lugares de autoridade, são instituições totais e eu vou habitá-las de igual para igual’.

O Zé Carlos sempre fala sobre fazer uma guerra de narrativas. E a ideia, que é uma ideia do Eduardo, é fazer várias apresentações, saraus, uma série de atividades para que todos se sintam convidados a entrar. Essa é a perspectiva da exposição. A ideia é que o grande convidado é o povo. Essa é uma exposição gratuita porque é preciso que as pessoas entrem.

Penso que o destino dessa exposição, se ela quer falar das formas da democracia, é ter uma vocação de fato plural.

Por outro lado, eu sei o que significa um segurança na porta. Sei o que significam essas instituições que têm esse passado colonial. Mas nós só vamos descolonizar as artes de fato se a população for convidada a entrar. A exposição foi abraçada popularmente em Brasília e em Belém. Os números são impressionantes. E acho que é um pouco por conta disso: porque a exposição se apresenta como um espaço em aberto, um espaço em construção. Ela tem essa vocação inclusiva na sua organização, na sua curadoria, na sua produção.

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Tomara que esse formato da exposição, que se abre para o local, se abre para novas curadorias, para novos artistas, para novas gestões (no que se refere à produção e à montagem)… tomara que ela apareça e transpareça na exposição. Esse é o meu desejo.

Fotos da exposição
(Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

Enquanto curadora, como você tem percebido essa iniciativa recente aqui no Brasil de horizontalização das práticas de alguns museus como forma de alcançar mais inclusão?
Olha eu sempre digo que estou curadora, não sou curadora. Eu sou antropóloga, historiadora e fui entrando nesse mundo das artes. Uma das minhas grandes escolas foi o projeto “Histórias” que eu desenvolvi junto com Adriano Pedrosa [curador-chefe do MASP]. Primeiro com “Histórias Mestiças”, depois nas várias Histórias: da Infância, Afro Atlânticas, da Loucura, das Mulheres. A base do projeto já era essa: misturar e atravessar vários marcadores sociais da diferença, como temporalidade, região, raça, geração, classe social.

Acho que o que eu tenho feito desde “Enciclopédia Negra” e “Contra Memória” foi trabalhar junto com os artistas e então radicalizar mais essa concepção, no sentido de não ter essa diferenciação tão canônica de que é o curador quem resolve, quem faz, quem manda, quem encomenda ao artista. Eu acho que a exposição fica muito mais orgânica se o artista participar como ele é. E ele é um intelectual. Há também uma concepção mais ampla em relação ao cânone, né? Como é que você tenciona esse cânone?

Então, penso que toda exposição é um ensinamento, e estou tendo uma fábrica de aprendizagem com a exposição Brasil Futuro porque estamos sempre lidando com esses imponderáveis: o acervo, o local… Tudo é aprendizado, tudo é ampliação, tudo é incorporar novos horizontes.

Fotos da exposição
(Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

E como você lida com representatividade e autoria nessa exposição?
Eu parto do suposto de que todo mundo tem lugar de fala, a gente só precisa saber qual é o nosso. Então é totalmente diferente uma obra que fale dos indígenas de uma obra que é feita por um indígena. A obra da Daiara Tukano foi feita para exposição e acabou imediatamente se convertendo, junto com a Djanira, nos dois cartões postais da exposição. Então o que a gente procura fazer aqui é ter uma paridade.

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Ainda não temos a paridade que queremos com artistas trans, com artistas LGBTQIA+, não temos ainda representatividade para artistas com deficiências… Eu acho que essa é uma grande questão. Nesse sentido, acho que temos que ampliar muito. Por outro lado, acho que a exposição vai ficando cada vez mais negra e cada vez mais indígena.

Penso que o destino dessa exposição, se ela quer falar das formas da democracia, é ter uma vocação de fato plural. Acho que ninguém delega representação, acho que isso não existe. Houve um momento em que a branquitude era quase neutra, era um lugar de conforto, quase opaca, que não se racializava. Hoje há cada vez mais pessoas, como eu, que corretamente estão sendo racializadas. Se essa perspectiva for aparecendo na exposição, aí ela será o que pretende ser. E como a democracia, ela é incompleta. A gente vai aqui tomando a incompletude não como uma uma falha, mas como uma vocação e destino. 

Fotos da exposição
(Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

Essa é uma exposição que acolhe o que consideramos ser contradições. Quais são os paralelos que podemos traçar entre nossas contradições do passado, as do agora e, quiçá, as do futuro?
Bom, o Brasil é um país feito de contradições. Tanto que Tom Jobim dizia que o Brasil não é para principiantes. A grande contradição da sociedade brasileira é a escravidão. Escravidão cuja realidade atual do racismo estrutural, sistêmico e institucional, como diz a Sueli Carneiro, não é apenas um legado, porque se fosse só um legado já teria finalizado esse problema. Nós criamos esse racismo estrutural que é uma máquina de desigualdade, uma máquina de manutenção e construção de desigualdades. Portanto a escravidão diz respeito não só às populações negras que foram as vítimas, mas que também reagiram, se rebelaram, produziram insurreições.

É preciso discutir, como diz a Cida Bento, também o legado para as populações brancas. O que é que significa ter contado com quase quatro séculos de um sistema tão hierarquizado? Um sistema em que a branquitude estabelece a cor dos seus outros, racializa os seus outros, mas não racializa a si própria. Durante muito tempo a branquitude foi um lugar de privilégio, um lugar de conforto não nomeado.

Eu tenho passado por essas contradições todas e acho que elas são muito salutares. Nós estamos num momento de letramento racial pelo qual as populações brancas têm que passar e pelo qual eu tenho passado. E acho que essa exposição trabalha com essa questão do letramento racial. Eu sempre digo que, no Brasil, as populações negras, nós sabemos, não são minorias, mas sim maiorias minorizadas na representação. Essa é uma contradição fundamental da sociedade brasileira. E aqui em Salvador essa contradição se aguça, se avoluma, se agiganta ainda mais. E a exposição lida com essas contradições no núcleo “Descolonizar”, no qual nós tratamos justamente de vozes durante tanto tempo silenciadas e apagadas como a voz das mulheres, das populações negras, populações indígenas, LGBTQIA+.

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Eu sempre digo que nós trabalhamos com a noção de trauma a nível individual. Nós sabemos que o trauma produz muita amnésia, falta de memória, muito silêncio, violência. Mas é preciso que a gente trabalhe com os traumas da escravidão. É preciso que nós tratemos deles nos mais variados sentidos e formas, assim como o trauma do racismo estrutural e do racismo que produz as raças, que constrói raças como um projeto da modernidade.

Fotos da exposição
(Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

Há alguma relação entre o percurso da exposição e o percurso da vitória eleitoral?
A gente ficou com vontade de fazer um percurso diferente do percurso tradicional, cujo primeiro lugar é São Paulo ou Rio de Janeiro. Primeiro porque nós achamos justo, já que o governo Lula deve muito ao Nordeste. Mas também fizemos isso por uma questão política: as nossas histórias ainda são muito sudestinas. Ou seja, o Sudeste fala pela nação. Não pode ser assim, né?

Então, essa ideia de inverter a rota da exposição…. Você não acredita na quantidade de gente que me pergunta ‘mas não vem pra São Paulo? Não vem pra Porto Alegre?’. A gente quer responder essa pergunta assim: vai para Salvador, vai para Fortaleza, vai para Aracaju. Depois eu espero que vá para São Paulo também. A gente vai para o Rio. Até porque a democracia não é pregar para convertido, né? A gente precisa falar dos nossos outros. Então a exposição pretende falar desses vários outros entre nós.

Você disse que democracia não é pregar para convertidos. Mas, por exemplo, a exposição tem obras que fazem nítida referência a Lula. Te interessa pensar nos bolsonaristas que porventura visitem a exposição Brasil Futuro?
Toda a exposição é um contexto. A gente não pode esquecer que a exposição Brasil Futuro: as formas da democracia foi aberta no contexto da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Mesmo assim, ela não é uma exegese de Lula. Ele aparece lá como um projeto de democracia, mas o texto curatorial reafirma a ideia da incompletude da democracia e a ideia de que o Brasil está muito longe de ter uma democracia. Não teremos uma democracia enquanto o país for tão racista, tão machista, praticar e ser campeão em transfeminicídios e feminicídios.

Então a exposição, em nome de celebrar o que foi o primeiro de janeiro de dois mil e vinte e três, ela não coloca um ponto final. Tanto que as imagens do Lula aparecem no andar do meio, não estão nem no andar acima, tampouco no primeiro andar. Elas convidam para reflexão sobre o que foi esse momento em que vivíamos a alegria de colocar um fim pelo menos na figura do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Fotos da exposição
(Fernando Vivas/GOVBA/divulgação)

Miserável país aquele que não tem heróis ou miserável o país que precisa de heróis?
Eu diria que miserável é o país que só tem heróis homens europeus brancos. Acho que é muito importante que a gente tenha uma pluralidade de heróis para que possamos celebrar as nossas várias expressões, de raças, gêneros, sexo, região, geração, classe social.

Eu sou contra, como dizia o Lima Barreto, o exercício da patriotada, que é uma espécie de patriotismo cego, surdo, sectário. É o que [a escritora] Chimamanda Ngozi Adichie chama de “história única”. Mas se a história não for única, sim for múltipla, plural e der lugar aos seus inúmeros heróis em inúmeros episódios de contestação, enfim, aí não há problema. Eu acho que triste é o país que só tem uma memória, uma história única.

E quanta memória cabe na nossa História, Lilia?
Tudo depende do que você chamar de memória, e do que chamar de História. Mas eu diria que a memória é infinda porque ela faz parte do nosso arsenal de afetos, de recordações, de amizades, de bem comum. Todos esses valores estão contemplados na memória, então a memória por definição é infinda. E a História, se for pensada nessa sua multiplicidade, também o é. Então esse é um projeto não só inacabado como pautado na ideia da infinitude. Essa é a beleza dessa história toda…

Só vamos descolonizar as artes de fato se a população for convidada a entrar.

Lilia Schwarcz
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