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22ª Bienal Sesc_Videobrasil: a memória em contínuo movimento

Sesc 24 de Maio, em São Paulo, recebe a 22ª edição do Videobrasil, festival dedicado as artes contemporâneas

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 29 nov 2023, 10h40 - Publicado em 25 out 2023, 15h20
Obra Era, de Julia Baumfeld (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)
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Andar pelo centro de São Paulo pode ser um verdadeiro exercício contra o tédio. Muitos imprevistos podem ocorrer no caminho, mas se tiver sorte pode se deparar com algum programa cultural, como uma bienal de arte. E é exatamente isso que quem caminha pelas vielas fechadas do bairro da República irá encontrar. Isso porque o Sesc 24 de Maio abriga a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil, um dos maiores e mais antigos festivais de arte contemporânea do país, que tradicionalmente acontece a cada dois anos. Da última vez, no entanto, ele precisou ser adiado por quatro anos, dois deles interrompidos pela pandemia. Havia mais um motivo para esse atraso: em 2023 a mostra completa 40 anos. Essa era, portanto, uma oportunidade de contemplar sua história e rever os avanços que o vídeo passou nessas décadas — que não foram poucos.

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Obra do coletivo Sada Regroup (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)

A mostra, que abriu em 14 de outubro, traz a memória como tema central, com o título A memória é uma ilha de edição, frase retirada do poema “Carta aberta a John Ashbery”, de Waly Salomão. “Foi um poeta que influenciou muito a bienal. Essa é a razão também de fazer do poema dele o mote dessa edição”, conta a curadora Solange Farkas, em entrevista para Bravo!.

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Curadores da 22ª Bienal Sesc Videobrasil, Solange Farkas, Raphael Fonseca e René Akitelek Mboya (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)

A lembrança está presente de muitas maneiras, a primeira delas é através do percurso do Videobrasil. Criado em 1983 por Solange, o festival tinha como missão explorar diferentes possibilidades de se produzir arte tendo o vídeo como principal interface, que iam dos documentários as performance-vídeo. Naquele ano, o trabalho de José Celso Martinez Correa saiu vencedor. Nele, Zé escancarava a relação do teatro com a filmografia, uma que iria se estender por todos os trabalhos que vieram depois. “O vídeo sempre foi uma mídia inquieta, que flertou com outras experiências. Ele já não cabia no espaço escuro do cinema”, afirma Solange.

Nesta semana, os vencedores da edição atual foram anunciados: Gabriela Pinilla (Colômbia), Sada [regroup] (Iraque), Nolan Oswald Dennis (Zâmbia), Maksaens Denis (Haiti), Janaina Wagner (Brasil), Vitória Cribb (Brasil), Bo Wang (China), Leila Danziger (Brasil) e Froiid (Brasil).

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Obra “astronauta e cosmonauta”, de Mayana Redin (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)
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Pode parecer uma realidade paralela para novas gerações imaginar uma época em que o vídeo ainda era uma ferramenta moderna, pouco associada ao uso corriqueiro, como a que temos atualmente, mas, de fato, era um dispositivo pouco acessível e presente apenas em momentos muito especiais. Alguns anos após a inauguração do festival, Solange decidiu agregar um valor de resistência: que aquele fosse um encontro internacional, onde os países do Sul Global, historicamente relegados na história da arte, tivessem protagonismo. Desde o começo, artistas de países da África, Américas, Ásia, Europa, Oriente Médio e Oceania marcaram presença. E esse se tornou o seu grande legado. “Temos aproximações identitárias, culturais, políticas e geopolíticas. Sabemos que essa cena de arte, assim como o Brasil naquele momento, é muito negligenciada. É uma cena a ser descoberta, a ser explorada no campo da arte. Nem incluo os outros campos.”

A tarefa estava longe de ser simples, o Brasil caminhava para fora de uma ditadura, com meios de comunicação muito limitados (quando comparados com os de hoje). Sem Internet, era necessário mapear e identificar artistas que estivessem conectados aos interesse do festival. “Nós não tínhamos a comunicação como é hoje, nem sequer tínhamos fax”, conta Solange.

“O vídeo sempre foi uma mídia inquieta, que flertou com outras experiências. Ele já não cabia no espaço escuro do cinema”

Solange Farkas, curadora do 22º Videobrasil

A curadora lembra que há 30 anos, quando o festival ainda era uma novidade, ela era frequentemente questionada sobre o significado desse Sul Global e por que a escolha desses territórios. “Quando resolvemos direcionar nossa atenção para a produção desses lugares, era quase uma abstração. Nem tínhamos essa terminologia consolidada, falávamos em ‘Panorama do Sul’. Entendemos que essa tecnologia do Sul Global, hoje, ocupa um lugar central no mundo. Finalmente, ela veio para a pauta, possibilitando a reflexão sobre esse reposicionamento geopolítico, onde passamos a ter um protagonismo.”

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Obra descanso de Rodrgo Martins (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)
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As mudanças implicaram não só uma nova perspectiva política e global, mas também em novos dispositivos e linguagens artísticos. Com o tempo, não fazia mais sentido para a organização do festival limitar a exposição ao vídeo, como foi durante os primeiros 20 anos do festival. “O vídeo já não estava mais confinado a um único território. Ele começava a demonstrar sua potência ao se fundir com outras experiências artísticas, sobretudo com a performance, a escultura e a arquitetura.” Porém, fizeram questão de manter o nome, como uma homenagem, uma recordação daquele começo, que não deveria ser esquecida.

Para ela, há uma relação muito forte entre o vídeo, enquanto instrumento de registro, e a nossa memória. É dessa forma que o poema de Waly Salomão justifica a bienal. “É uma grande exposição, que também funciona como uma mostra paralela que narra várias histórias desse cenário. Ela contextualiza o aspecto político no qual tudo isso aconteceu ao longo dos últimos 40 anos, neste sul”, completa Solange.

Entusiasta declarada dessa mídia, a curadora não deixar de destacar o valor atualizado do vídeo. “O que nos fez segurar durante a pandemia? O vídeo.”

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Obra 53, de Sofia Borges (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)

Ancestralidade, diáspora e exílio

Hoje não é necessário perder tempo explicando a escolha desse lugar do mundo. A questão já está respondida. Há espaço para explorar outros temas específicos desses países, que muitas vezes podem trazer narrativas de dor e de exploração, embora as histórias não se limitem a isso.

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“Pelo fato de o evento lidar com o vídeo e com países, que muitas vezes passaram por traumas históricos muito diferentes, por lidarmos com artistas que vieram de colônias europeias em algum momento, muitos artistas trouxeram a memória como tema, com filmes de arquivo, trabalhos com questões de revoluções e domínio europeu”, declara Raphael Fonseca, um dos curadores do festival.

Ele conta que, para a seleção dos artistas, resolveram fazer um open call, ou seja, uma convocatória on-line para os realizadores se inscreverem. Receberam mais de 3 mil respostas. Dessas, selecionaram, ao fim, mais de 100 obras, de 60 artistas e coletivos, de 38 países, abrangendo a pintura, a fotografia, o trabalho têxtil e, claro, o vídeo.

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Obra Nuestra Señora de los dolores de la chola poblete (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)

Confira, abaixo, algumas das obras que estão presentes na Bienal. Perguntamos aos artistas sobre a inspiração de suas obras expostas e como elas se relacionam com questões contemporâneas, incluindo conflitos sociais e políticos.

Adrian Paci (Albânia), é artista visual, pesquisador e professor. Trabalha principalmente com vídeos e instalações, mas também fotografia, performance, pintura e escultura.

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Obra: Il Salto, 2014. Mosaico de Mármore de Adrian Paci (Romeu Ubeda/Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)

“A maneira como uma obra de arte ressoa com o público é sempre uma aventura, você nunca sabe. Essa é também a parte interessante dessa relação. Você não pode prever isso com antecedência. A inspiração vem de um relacionamento de longa data que tenho com imagens em movimento, explorando-as por meio de meios que normalmente são vistos como meios fixos, como pintura, desenho e, neste caso, mosaico. Eu sempre procuro fragmentos de imagens retirados do movimento do vídeo ou filme, que de alguma forma o transportam para algum lugar fora do contexto que as imagens em movimento estão mostrando. Neste caso, temos um homem permanecendo no topo de uma espécie de pedestal de maneira precária. É muito precário para ser considerado um monumento, mas, ao mesmo tempo, o mosaico, uma técnica antiga, o fixou de alguma forma na bidimensionalidade do espaço e na fisicalidade do mármore. De alguma forma, a figura tem algo quase religioso e metafísico. Na verdade, a cena é tirada de um treinamento militar na Albânia dos anos 70. Gosto quando a imagem fixa retirada do contexto da imagem em movimento “trai” de alguma forma o contexto e abre novas possibilidades de leitura e de ter fantasias sobre a imagem.

Essa é uma questão complexa. Você nunca aborda essas questões por meio de uma obra de arte. Tem mais a ver com uma atitude. No meu caso, eu chamaria de prestar atenção, evitar o óbvio, não considerar a obra de arte como um recipiente da declaração do artista, mas como um gerador de possibilidades para fazer você pensar e criar uma mudança na maneira como você vê as coisas. Eu uso diferentes meios. Sou pintor por formação, mas sou mais conhecido por meus trabalhos em vídeo e instalações. Fiquei surpreso e feliz ao mesmo tempo, quando os curadores do Videobrasil me convidaram com um mosaico. Isso vai na mesma direção da minha atitude de evitar o óbvio.”

Brook Andrew (Austrália), artista visual e curador. Trabalha com instalação, vídeo, pintura, performance e colagens.

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Obra: Brook Andrew. Wira Memory / Nenhuma Memória, 2023. Instalação (Romeu Ubeda/Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)
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“A parede pintada de preto e branco com o texto em neon é um mantra do meu estilo artístico que representa minha cultura Wiradjuri (aborígene australiana) e língua. O padrão preto e branco é derivado da tradição Wiradjuri de escudos e entalhes em árvores, e a palavra ‘WIRA’ nesta peça em neon é Wiradjuri para ‘não’. Portanto, o uso da palavra WIRA na poesia aponta para a jornada da vida até a morte. ‘INTO LIFE WIRA MEMORY FORGETS EVERYTHING UNTIL DEATH’ é um enigma e pretende desafiar o que é a memória e como entramos na vida. A importância de usar diferentes idiomas, neste caso, português, inglês e Wiradjuri, destaca as complexas relações entre colonialismo e história, bem como o linguicídio (morte de idiomas). Muitas vezes, os mal-entendidos culturais, especialmente em relação aos povos indígenas, são complicados e não permitem uma compreensão verdadeira. Quanta cultura e significado são perdidos ou distorcidos devido a interpretações errôneas é devastador, e então a morte nos leva.

Esta poesia é um enigma. Eu imagino que o público irá interpretar o texto da forma que desejarem, e como metade do neon está de cabeça para baixo, as pessoas podem pensar que existem opostos na forma como interpretamos a vida e a consumimos até a morte. Talvez algumas pessoas reflitam sobre a memória e a morte e se realmente lembramos além da morte.

O enigma aponta para a poesia e os problemas de interpretar a vida e a morte e os processos de memória ao longo de uma vida. Isso também destaca que muita linguagem e comunicação se perdem na tradução, especialmente quando se trata do impacto contínuo da colonização e daqueles de nós que tentam resolver conflitos em busca de uma vida melhor. Espero que essa obra de arte abra a mente das pessoas para traduções e interpretações alternativas da vida de forma mais geral e, especificamente, quando se trata de perspectivas indígenas e similares. A Austrália e muitas nações e continentes, como a América do Sul, têm comunidades indígenas complexas e profundas em risco, e espero que a interpretação e representação deste enigma apoie visões alternativas da vida e experiências.”

Youqine Lefèvre (China), é artista, mestre em artes visuais pela Royal Academy of Fine Arts (KASK). Em seus trabalhos em fotografia e vídeo, retoma sua história pessoal de adoção internacional e transracial.

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Obra: The Land Of Promises, 2023. Instalação. (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)

Obra: The Land Of Promises, 2023. Instalação.

‘La chambre claire’, de Roland Barthes. O vídeo consiste principalmente em imagens de arquivo capturadas por um grupo de pais adotivos belgas, incluindo meu pai, que foram à China em 1994 para adotar meninas. Através desse trabalho e dessas imagens, estou também abordando a questão da memória por meio de arquivos, que atestam um ‘isso aconteceu’, especialmente porque não tenho memória direta desses eventos, já que eu tinha oito meses quando fui adotada. Acredito que o vídeo ajuda o público a compreender melhor meu trabalho. Cronologicamente, é importante entender onde estou nessa história para compreender o principal tema do meu trabalho, a política de controle de natalidade na China, e por que decidi trabalhar nisso. Minha história é uma das muitas consequências dessa política. Também espero que, além do aspecto emocionante, as pessoas percebam as relações de poder em jogo na adoção internacional e transracial, que esses arquivos e o trabalho testemunham”, disse a artista para Bravo!.

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Obra: The Land Of Promises, 2023. Instalação de Youqine Lefèvre (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)

“A partir da minha história pessoal, ou seja, meu nascimento na China, a separação da minha família biológica, minha adoção, eu ampliei o tema do meu trabalho para tentar entender o contexto. Tentei compreender por que, como e quais foram e são as consequências dessa política de controle de natalidade. Para tornar meu trabalho o mais completo possível, utilizei documentos oficiais chineses datados de 1994, imagens de arquivo dos pais adotivos (vídeos e fotografias) e passei vários meses lendo os escritos de demógrafos e especialistas no assunto. Também viajei para a China em 2017 e 2019 para conhecer famílias que ficaram na China e cujas vidas foram claramente afetadas por essa política de alguma forma.

O trabalho inclui, portanto, muitos depoimentos dessas pessoas, o que nos ajuda a compreender melhor o contexto com base em histórias individuais, bem como na cultura chinesa. Quando comecei a trabalhar em “The Land of Promises”, encontrei muito poucos trabalhos sobre a política de controle de natalidade da China e adoção, e ainda menos feitos por pessoas que foram adotadas. Vejo que na literatura, por exemplo, cada vez mais adotados estão se manifestando sobre o assunto e compartilhando sua experiência. Portanto, espero contribuir para esse movimento também na cena artística.”

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Lacuna, de Hsu Che Yu (Bienal Sesc _Videobrasil/divulgação)

 

 

22ª Bienal Sesc _Videobrasil – A memória é uma ilha de edição

Sesc 24 de Maio – Rua 24 de Maio, 109, República, São Paulo

De 18 de outubro a 25 de fevereiro de 2024. De terça a sábado, das 9h às 21h; domingos e feriados, das 9h às 18h

Acessibilidade: videoguia de boas-vindas à exposição; Legendagem para Surdos e Ensurdecidos (LSE) e vibroblaster para algumas obras sonoras; objetos táteis; audiodescrição dos objetos táteis; piso podo tátil e impressão dos textos em dupla leitura (português ampliado e Braile).

Entrada gratuita

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