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O mais antigo ogan do Brasil

Aos 99 anos, morando há 50 no Rio de Janeiro, Luiz Angelo da Silva, o Ogan Bangbala, foi diretor do Afoxé Filhos de Gandhy

Por Jefferson Barbosa
Atualizado em 9 jan 2024, 15h53 - Publicado em 15 ago 2018, 09h08
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Ogan Bangbala (Leonardo Wen/Folhapress/divulgação)
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As mãos seguram firme as duas varetas de goiabeira ou ipê que, ao tocarem o atabaque, emite os sons que chamam os orixás. Ogan Bangbala, 99, é quem toca o principal instrumento do Candomblé. Soteropolitano, ele é morador do bairro Shangrilá Rosa, em Belford Roxo, Baixada Fluminense, está na cidade há quase 70 anos.

Os quatro cômodos são cobertos por um telhado de amianto. As paredes num azul piscina tem muitas fotos e enfeites do Candomblé, atabaques de miniatura e xequerês. Elke Maravilha se repete em algumas fotos, que desfilou durante muitos anos no Afoxé Filhos de Gandhy, onde Bangbala foi um dos diretores em Salvador e no Rio. Um relógio do Vasco se destaca no mosaico. Há também um pé de gameleira, árvore sagrada para o povo iorubá. O quintal tem muros sem reboco e na varanda há uma sinfonia de passarinhos divididos em sete gaiolas, entre curiós e papagaios.

Qual é a história de Ogan Bangbala?

Nascido em 1919, Luiz Angelo da Silva teve dezesseis irmãos, mas apenas três passaram dos primeiros anos de vida. “Sou o último membro da minha geração na família vivo, todos os outros já morreram”. Dos filhos, dois moram em Ilhéus, um no Nordeste de Amaralina e um outro no subúrbio do Rio.

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Ogan Bangbala ()

Bangbala é o mais antigo ogan alagbê vivo no Brasil e em atividade. Ogan é a pessoa responsável num terreiro de Candomblé por tocar instrumentos de percussão, que podem ser atabaque ou agogô. Ele não entra em transe e auxilia o babalorixá ou a mãe de santo da casa. O alagbê começa o toque e é através do seu desempenho que o orixá executa sua dança, de caça, de guerra.

“A mãe de santo mais próxima de mim foi Beata de Yemanjá, minha melhor amiga, que faleceu em 2017. Eu fui o responsável pelo ritual fúnebre dela, o axexê.” O mesmo Luiz, 61 anos antes, no terreiro de Olga do Alaketo, estava na iniciação de Mãe Beata. Ele emenda: “no Candomblé, a mulher tem muito mais protagonismo que os homens”. Maria Moreira, sua companheira, o acompanha em tudo, inclusive no exercício da memória.

Que negócio é esse do Vasco perder? O baluarte negro de voz tranquila demonstra a frustração com o Vasco da Gama, time do coração, que no dia anterior, perdeu nos pênaltis a final do Campeonato Carioca para o Botafogo de Futebol e Regatas. O outro lado do peito  —  assim como o papel de parede de seu smartphone —  é vermelho e branco, as cores do pavilhão do Acadêmicos do Salgueiro, escola que este ano desfilou na Sapucaí com o enredo Senhoras do Ventre do Mundo.

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Mesmo tendo idade avançada, Bangabala lida com a morte com frequência por conta da sua função de griot  —  mestre em iorubá. Ele é responsável por conduzir quase toda semana essas cerimônias que podem durar até sete dias e acontecem até que se completem 21 anos de uma morte. “Nem sempre essa regra é respeitada! Quem me passou os ensinamentos sobre os axexês foi Cipriano Manuel do Bonfim, da Casa Branca do Engenho Velho, o mais antigo templo de Candomblé no Brasil, fundado em 1735”. Por ser o mais antigo ogan vivo do Brasil, várias casas em todo o país o convidam para realizar os axexês todos os meses.

“Fui iniciado no Candomblé de Lili D’Oxum, em 1937, em Salvador”. No peito, ele carrega um crucifixo, na cabeça um óculos preto-e-branco moderno, no antebraço direito uma tatuagem de Xangô — seu orixá. “Na religião tudo tem um sentido sagrado: as cores, a forma como as pessoas se portam, o alimento, as roupas.”

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Nos fundos do quintal, onde há um espaço que está sendo reformado para acontecerem as oficinas de Bangbala, ficam três atabaques que ele leva para onde vai. Bangbala confeccionou os três instrumentos há mais de mais de 70 anos.

“Tenho pelo menos trinta discos gravados com cânticos de Candomblé em iorubá”  —  língua na qual é fluente. À essa altura da conversa ele se levanta do sofá onde que fica a maior parte do tempo e busca dois gravadores, um analógico de fita K7, que ele não usa mais, e sua nova aquisição: um modelo digital.

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Ogan Bangbala ()

O saber ancestral do terreiro

“Estar hoje aposentado pela saúde e trabalhando em prol da minha religião, aos 95 anos de idade, só me traz dignidade. Deus, Olorum, Xangô e Oxum já fizeram por mim mais do que eu merecia.” Luiz fabrica berimbaus, atabaques e xequerês, além de ministrar oficinas de canto, toques e axexês para jovens ogans, transmitindo seu conhecimento ancestral: “ogan deve aprender tudo: cantar, dançar, tocar.”

“O universo do Candomblé ainda é pouco conhecido, tem coisas que só quem é do Candomblé pode saber, ainda existe um forte desrespeito a nossa religião por parte de setores intolerantes e reacionários, inclusive de outras religiões”. No dia 5 de abril deste ano, a Justiça condenou a Rede Record a dar direito de resposta às religiões de origem africana em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público. Ficou provado que a emissora ofende e demoniza outras religiões, o que é vedado pela Constituição. Serão dezesseis horas de conteúdo no horário nobre da TV.

Os quase cem anos não o impede de ter uma vida normal, mas a memória é fragmentada, um vaivém contínuo. A intelectualidade orgânica de griot faz Bangbala carregar uma quantidade de informações e detalhes que não se encontra nos livros, saberes que só a vivência e a oralidade são capazes de transmitir a quem venha seguir o caminho de ogan.

Pouco antes da nossa conversa terminar, ele busca um berimbau de fabricação própria para demonstrar as habilidades, começa a tocar o Toque de São Bento de Angola  —  capoeira. “Assim como em outras religiões, o Candomblé não tem só um seguimento, são quatros: Jeje, Angola, Ketu e Ijexá.” Segundo o IBGE, hoje no Brasil, pelo menos 300 mil pessoas se afirmam do Candomblé.

No dia 5 de Novembro de 2014, Ogan Bangbala recebeu das mãos do então vice-presidente de Dilma Rousseff, Michel Temer a medalha de Comendador  —  honraria da Ordem do Mérito Cultural. Para o historiador Luiz Antônio Simas, Bangbala condensa a sabedoria de um ogan completo, aqueles capazes de dominar todos os fundamentos, o conhecimento de comandar os ritos de axexê, a grande festa de recondução dos mortos ao todo primordial.

Durante as cerimônias Bangbala ocupa um espaço que é composto por três atabaques e o agogô. Cada verso que ele canta é logo repetido por todos, como se fosse uma ciranda ou uma roda de samba. Lúcido, ele segue sua caminhada ancestral.

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