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OLÁ,

O som da resistência na trilha sonora de “Ainda Estou Aqui”

Como a música resgata memória, história e emoção no cinema

Por Ana Claudia Paixão
Atualizado em 28 fev 2025, 15h52 - Publicado em 28 fev 2025, 07h00
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 (Colagem digital da partitura de detalhes com cena do filme "Ainda estou aqui" / divulgação //Redação Bravo!)
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O poder narrativo das trilhas sonoras é incomparável, especialmente quando bem aplicadas. Ela reflete a visão do diretor, sua alma e fala com o inconsciente coletivo de forma precisa. Também vamos combinar que, quando o diretor tem bom gosto, é uma delícia. Quentin Tarantino é um que seleciona pessoalmente todas as canções que usa em seus filmes e nunca erra em criar pérolas para os fãs (podemos passar dias falando da trilha de Pulp Fiction). Outro diretor que jamais erra é Walter Salles Jr. que conseguiu apresentar clássicos da MPB em Ainda Estou Aqui, educando e encantando novas gerações (sem deixar de emocionar quem já conhecia as canções).

Tenho sorte. Embora hoje o etarismo meio que insista em encostar quem está “na meia idade” ou seja da Geração X, quando se trata de música vivemos períodos de extrema riqueza cultural. Antes do pop new wave dos anos 1980, crescemos ouvindo o que ainda há de melhor na Música Popular Brasileira, quando os artistas desafiavam a repressão e censura com inteligência e precisão. As metáforas, as implicações das letras eram repletas de easter eggs (antes de chamarmos assim) e lembro com muito calor no coração meus pais explicando o que realmente estavam cantando.

A galera mais jovem deve revirar os olhos quando escutam seus pais ou avós saudosistas falarem que a música perdeu muito em termos de defender ideias e liberdade como era comum nos anos 1970. E estão enlouquecidos com as músicas que estão no filme Ainda Estou Aqui, que tem movimentado as plataformas de música, resgatando Erasmo Carlos e outros artistas. Nunca é tarde! Mas, antes de voltar às canções, vale lembrar que, ainda que estranho hoje, as letras das músicas tinham que ser submetidas à aprovação do Governo antes de ser gravadas. Dessa forma, virou uma arte desafiar a censura com a escolha precisa das palavras, para que escapassem a proibição. E aí as pessoas ficavam ainda mais emocionadas quando ouviam a mensagem que era clara, porém sutil.

“A supervisão musical do filme é soberba e um exemplo de como traduzir o roteiro do filme para a linguagem musical.  Ela conecta a música com momentos históricos e faz um recorte completo da época, navegando por diferentes movimentos da música brasileira da época, entre jovem guarda, tropicália e coisas mais tradicionais como Nelson Sargento. Também traz referências internacionais muito marcantes como Donnie Hathaway. Músicas como Take Me Back to Piauí de menestrel Juca Chaves ironizam a insatisfação da época, e a letra de Como Dois e Dois enfatiza que nada tem lógica durante esse momento terrível da história Brasileira, era para as pessoas acreditarem nos dogmas de um estado ditatorial”, reforça Vivian Aguiar-Buff, diretora musical na DreamWorks e executiva de Hollywood.

A canção de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, que abre o filme – É preciso dar um jeito, meu amigo – resume o clima da história e é icônica. “Eu cheguei de muito longe e a viagem foi tão longa”, Erasmo canta. “E na minha caminhada, obstáculos na estrada, mas enfim estou aqui. Mas estou envergonhado com as coisas que eu vi, mas não vou ficar calado. No confronto acomodado, como tantos por aí. É preciso dar um jeito, meu amigo”, completa.

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Além de linda, é perfeita para traduzir o clima da época.

A dupla brasileira raramente usou seu repertório para falar abertamente de política, tanto que ficaram mais associados às canções de amor e amizade. Como lembramos, no período mais duro da ditadura, também deram seus recados. Recomendo ouvir os álbuns Roberto Carlos 1971 e Erasmo Carlos 1971 de ponta a ponta.

No caso de Roberto, que abre com Detalhes, além de “Debaixo dos Caracóis de Seus Cabelos” e “As Curvas da Estrada de Santos”, é “Como Dois e Dois”, escrita por Caetano Veloso, que tem maior destaque porque essa pequena canção de saudade e separação não é de amor. Roberto abre avisando “Quando você me ouvir cantar, venha, não creia. Eu não corro perigo”. Perigo de que? “Quando eu canto eu sou mudo, mas eu não minto”, avisa.

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No filme, Eunice Paiva aumenta o volume dessa canção quando quer silenciar sua filha perguntando sobre a Ditadura (e além de responder, a canção também destaque o sofrimento dela sobre o desaparecimento de Rubens quando o verso diz que “tudo em volta está deserto. Tudo certo, tudo certo como dois e dois são cinco”. Ou seja, a conta nunca fecha.

Claro que o Tropicalismo não poderia ficar de fora. O movimento que revolucionou a cultura brasileira ao misturar elementos da música popular tradicional com influências do rock, da vanguarda artística e da cultura pop, está na trilha sonora com pérolas de Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé, e Os Mutantes, entre outros. Na época era algo como diga-me o que ouves e te digo de lado estás, por isso quando os militares encontram álbuns e pôsteres deles na casa dos Paivas, era a prova da subversão que queriam encontrar.

As músicas estrangeiras selecionadas também têm significado político. Por exemplo, a polêmica “Je T’Aime Moi Non Plus”, gravada por Jane Birkin e Serge Gainsbourg e que é sobre sexo chegou a ser proibida no Brasil por ser imoral. “Petit Pays”, de Cesária Evora também tem camadas políticas por cantar sobre minorias e saudade, usada em uma cena particularmente emocionante no filme.

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Outro grande destaque na coletânea é “Take Me Back to Piauí”, de Juca Chaves. A canção do compositor, músico e humorista brasileiro foi lançada em 1970 e toca no almoço de despedida de Eliana, que vai morar em Londres, e Rubens troca o disco na vitrola e puxa a dança. Juca Chaves era conhecido por seu estilo irreverente e crítico, combinando elementos de sátira política e humor refinado na sua música. Crítico ativo da Ditadura, foi exilado em Portugal e na Itália.

A trilha incidental é do gênio Warren Ellis, o parceiro de Nick Cave que é o responsável pelo som do artista assim como algumas das trilhas mais impactantes no cinema da última década. The Road e The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, são dois álbuns obrigatórios para qualquer colecionador. E Ainda Estou Aqui confirma sua sensibilidade.

Mas, curiosamente, a faixa mais emocionante incidental não é dele, mas do premiado Jóhann Gunnar Jóhannsson e sua emocionante “The Fight”. Ela foi escrita para a trilha sonora do filme Por Amor (Personal Effects), um filme de 2009 com Michelle Pfeiffer e Ahston Kutcher. Não teve o mesmo impacto há 16 anos. Precisava do filme certo. E ele é Ainda Estou Aqui.

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Por isso reforço, a trilha sonora de Ainda Estou Aqui não é apenas um complemento à narrativa, mas um personagem essencial, que evoca memórias, emoções e contexto histórico, um que reforça a importância da música como ferramenta de resistência e expressão.

O filme nos lembra que as canções não apenas contam histórias, mas as preservam, dando voz ao que muitas vezes foi silenciado. Assim como a arte soube desafiar tempos difíceis no passado, seu poder de emocionar e provocar reflexão permanece atemporal.

Descubra a trilha sonora completa do filme Ainda Estou Aqui:

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“A Festa Do Santo Reis” – Tim Maia
“Jimmy, Renda-Se” – Tom Zé
“É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo” – Erasmo Carlos
“Acaua” – Gal Costa
“Je T’aime Moi Non Plus” – Serge Gainsbourg Et Jnae Birkin
“Alexander” – Philip May, Alan Walker, Richard Taylor Clifford, John Povey
“Take Me Back To Piaui” – Juca Chaves
“Baby” – Os Mutantes
“Agoniza Mas Não Morre” – Nelson Sargento
“As Curvas Da Estrada De Santos” – Roberto Carlos
“Como Dois E Dois” – Roberto Carlos
‘The Ghetto” – Donny Hathaway
“The Fight” – Johann Johannsson
“Fora Da Ordem” – Caetano Veloso
“Petit Pays” – Cesaria Evora
“Um Indio Live In Brazil” – Caetano Veloso
“Falsa Baiana” – Gal Costa

Escute a trilha completa do filme Ainda Estou Aqui abaixo:

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