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“Black Rio! Black Power!” resgata legado dos bailes negros nos anos 1970

Desafiando a ditadura e a indústria fonográfica, Movimento Black Rio elevou a autoestima e promoveu a politização negra no Rio setentista

Por Gabriela Rassy
Atualizado em 17 set 2024, 01h36 - Publicado em 13 set 2024, 09h00
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AJB/RIO - 25/11/08 MOVIMENTO BLACK-POWER NO RIO DE JANEIRO. FOTO PRODUZIDA EM 14/07/76 FOTO: ALMIR VEIGA/CPDOC JB (ALMIR VEIGA/CPDOC JB/reprodução)
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Em meio a um dos momentos políticos mais sombrios do país, um grupo de jovens negros decide se juntar para fazer um baile. O mero encontro por si só já seria provocador. Imagine aquelas pessoas que eram em geral vistas trabalhando nos serviços da cidade, passando quase que invisíveis aos olhos endinheirados, deixando o alisamento e os uniformes de lado para levar seus cabelos afro, estilo e ginga para um baile feito por e para eles. 

James Brown na vitrola e brilho na pista. O Movimento Black Rio começa a se desenhar calcado na soul music e na valorização da negritude. A música podia até ser norte-americana, mas a forma de sentir, dançar e se colocar no mundo era genuinamente brasileira. Ainda que o momento fosse de festa, ali se criou um movimento cultural, político e social de união, dignidade, consciência e que ditou tendência estética e, claro, de referência de baile para pessoas negras no Rio de Janeiro.

Essa é a história contada no documentário “Black Rio! Black Power!”, resultado da pesquisa de mais de 10 anos do diretor e antropólogo Emílio Domingos, que acaba de chegar aos cinemas nacionais. Já conhecido por traçar um panorama fiel e afetivo de movimentos negros e periféricos, Emílio nos brinda novamente com uma necessária pesquisa histórica.

O ditetor entende que, falar de cultura periférica é falar de Brasil, da nossa base e identidade, já que estamos falando na maioria da população brasileira, de pretos e pardos. “Pensando contemporaneamente, a periferia é um grande laboratório, é onde o Brasil pulsa mesmo. E é na identidade nacional dessas periferias que surgem o samba, o maracatu, o funk”, analisa o cineasta em entrevista à Bravo!. 

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Diretor Emílio Domingos (João Muller Moura/divulgação)

O fio condutor que permeia o filme passa especialmente pelas memórias do engenheiro civil, jornalista, documentarista, produtor cultural, além de líder do Black Rio, Asfilófio de Oliveira Filho, conhecido como Dom Filó. “Eu fui preparado para esse processo todo, eu tenho essa consciência hoje. A ancestralidade me conduziu. Mas, naquele momento, eu era um jovem como outro qualquer, revoltado com o sistema, querendo mudanças rápidas”, relembra.

O que começou como um baile, se tornou um lugar de consciência, autoestima e celebração. Mais do que isso, passou a ditar tendência, a abrir espaço para produções nacionais e para um embate entre gravadoras. Como um compilado de músicas vende mais que os artistas que dominavam as televisões? Como essa galera de periferia consegue juntar tanta gente só no boca a boca? 

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“Acho que essa dificuldade de recursos muitas vezes é superada com inventividade. O Black Rio é um reflexo disso. O baile aqui não é igual ao dos Estados Unidos. Dom Filó e seus amigos pegaram uma cultura que era uma cultura da diáspora e transformaram em algo muito brasileiro e essencial, que está vivo até hoje, seja na questão ideológica do hip hop, seja através dos próprios bailes”.

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RJ 17/07/1976 Negros. “Black Soul”. Foto Arquivo / Agência O Globo – Negativo : 159350 (Foto Arquivo / Agência O Globo/reprodução)

Orgulho negro

Tudo começa com o Baile da Pesada do Big Boy, de 1970, onde o soul ganhou força. Mas pessoas negras de classe média não se sentiam representadas. Nem pelos bailes da periferia, nem pelos da zona sul, já que não podiam frequentar os grandes clubes da cidade. A estética negra da época era um problema: o cabelo afro, os sapatos de plataforma, a forma de se cmprimentar. Assim como hoje a estética no negro de comunidade, com seu chinelo, bermuda e cabelo descolorido incomoda em muitos ambientes. 

O Renascença, aberto em 1951, era o único que recebia a comunidade negra. Dom Filó passa a fazer a Noite do Shaft, inspirada na série de TV norte-americana de 1971. No baile, passavam slides nas paredes com fotos de artistas e personalidades negras, misturadas com fotos dos frequentadores do baile e mensagens de fortalecimento – estude!, cresça! O público se via e se reconhecia. Nascia ali o orgulho negro. 

O momento era de renascimento. Se na rua os negros tinham que se adequar, alisar cabelos, esconder seu estilo – e ainda assim tomar duras diárias da polícia -, no baile era orgulho. Os marginalizados foram exaltados. Surgem equipes de som por todo o Rio de Janeiro, uma delas, a Furação 2000, que na época tocava rock em Petrópolis. O encontro com a Soul Grand Prix foi explosivo e o baile vive seu melhor e mais politizado momento entre 1974 e 1975. 

Nesta mesma época, lançam seu primeiro LP, pela Warner, com compilação de faixas famosas do soul e algumas produzidas pela equipe Soul Grand Prix. Essa produção estoura e nasce a banda Black Rio.

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Ficam no Renascença até 1975, quando a casa fecha para reforma. Para cavar uma entrada nas outras casas, que ficaram ressabiadas com as mensagens e imagens politizadas, passam a colocar em meio às fotos, imagens de carros de corrida e automobilistas. A porta do clube Cascadura é aberta e surge o baile em alta velocidade, a Soul Grand Prix. A mensagem que antes estampava as paredes, passa a surgir no meio do som. Dom Filó parava o som de tempos em tempos para dizer “negro é lindo”, “a gente pode”, “estudem”. 

O movimento atinge seu ápice em 1977, com a venda de discos batendo recordes – e desbancando de Roberto Carlos a Tropicália. Negros empoderados com plena consciência de que eram sim bonitos, inteligentes, articulados. E isso desperta toda uma movimentação social. 

Jornalismo de um lado só

Junto a Dom Filó, integrantes das chamadas “equipes de som” do movimento, ativistas e frequentadores que viveram de perto o desabrochar dos bailes tecem retalhos vivos ao contar esta história. Por que ainda que ela estivesse viva para quem acompanhou o desenrolar do movimento, quase não havia registros da existência do Black Rio. 

Se de um lado o movimento negro ganha força na cidade, de outro ou militares passam a investigar o que era aquele encontro. Dom Filó e integrantes da equipe são levados a darem depoimentos, mas nada vai para frente. A esquerda então se incomoda e os acusa de imperialistas, de serem contra o samba e a música brasileira. 

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A primeira imagem em movimento que Emílio conseguiu é uma imagem do Fantástico, de 1977. Durante longos 11 minutos, uma única voz tenta colocar o baile contra o samba, os chamando de alienados, americanizados e que estavam atacando a música popular brasileira. 

Usado no filme, o áudio em off do produtor de samba Adão Alves diz ainda que os jovens não tinham capacidade psíquica para estarem ali. Uma outra matéria “Black Rio – O Orgulho Importado de Ser Negro”, de 1976, escrita por Lena Frias para o Jornal do Brasil, fazia a mesma tentativa de jogar o soul contra o samba. 

Mas Filó e seus amigos tinham suas estratégias para driblar a imprensa alinhada com a ditadura. Criaram um personagem chamado J. Black. Eram três jornalistas e um sociólogo que, com o pseudônimo, passaram a escrever no jornal Última Hora. “A gente falava bem para caramba do movimento. Eles ficavam doidos! Iam no baile e perguntavam, mas não conseguiam saber nunca. Éramos nós mesmos que usávamos as mesmas armas dele. Em contrapartida, a gente também sofria com a Globo criando personagens caricatas de nós com Trapalhões”, lembra Dom Filó.

Ainda que Arlindo Cruz, Leci Brandão e outros grandes sambistas frequentassem o baile, a mídia televisiva e impressa da época investe esforços em desmoralizar o movimento. As escolas de samba já se abriam para pessoas brancas e não existia o protagonismo negro. Músicas que inclusive maldiziam mulheres negras, seu cabelo, seu cheiro, fazem sucesso. 

Ao mesmo tempo, a disco ganha força. Gravadoras começam a investir, Globo lança a novela Dancin Days (1978) e o público começa a migrar. Migrar e embranquecer. As músicas que eram febre e tocava por todas as partes já não falam de negritude, as equipes tentam se adaptar, mas Dom Filó sai de cena. O baile vira disco e, mais tarde, funk. 

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RJ 17/07/1976 Negros. “Black Soul”. Foto Arquivo / Agência O Globo – Negativo : 159350 (Foto Arquivo / Agência O Globo/reprodução)

O legado do baile

Para Emílio, o filme é uma pequena contribuição para que essa geração atual e as futuras conheçam a geração do Filó, que é fundamental para entender quem nós somos. “E é uma resposta àquela matéria do Fantástico, de certa maneira. Acho que é importante que as pessoas conheçam a própria história. Me deixava muito indignado esse apagamento”.

“Cultura é uma forma de fazer política. Essa é uma outra dimensão que a gente tem para tratar no filme, como o nosso fazer cotidiano, as nossas realizações nessas direções culturais, elas são formas de transformação social. É um pouco trazer essa dimensão do que os bailes e do que o movimento Black Rio significou”, pontua a produtora Leticia Monte.“Black Rio! Black Power!” traz depoimentos do escritor Carlos Alberto Medeiros, os músicos Carlos Dafé e Marquinhos de Oswaldo Cruz, além de Rômulo Costa e Virgilane Dutra, dançarina da equipe Furacão 2000

O documentário nos transporta de volta para o Grêmio Social Esportivo Rocha Miranda, no Rio de Janeiro setecentista, considerado o Templo do Soul e onde o baile Soul Grand Prix fez morada. 

“O Black Rio propôs uma identidade, resistência e autoestima. E o movimento negro teve um papel fundamental nisso. Eu gostaria muito de deixar esse legado para diminuir o gap do conhecimento necessário para que a nova geração possa chegar e dar alegria para a ancestralidade. A gente fez o nosso papel e está entregando o bastão. É um legado muito importante para a condição da identidade negra neste país”, celebra Dom Filó. 

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Além da pesquisa de mais de uma década, Black Rio enfrentou vários desafios, desde a escassez de recursos pelo desmonte governamental de apoio ao audiovisual do último governo até a pandemia de Covid-19. Mas, apesar das adversidades, o filme consegue capturar a riqueza do movimento.

“Black Rio! Black Power!” não só homenageia o legado da soul music no Brasil, mas também propõe uma reflexão sobre como a cultura periférica continua a definir a identidade brasileira. A história do Black Rio é apenas a ponta do iceberg – inclusive podemos esperar desdobramentos diversos a partir dessas tantas vivências resgatadas ali. “Talvez com esse projeto e o Chic Show, a gente tenha inaugurado essa nova vertente de uma série de projetos sobre a música negra dos últimos 50 anos”, analisa Leticia. 

O Brasil é um baile de norte a sul, mas, como disse Emílio, essa cultura da festa e do baile é algo que eles levaram, como diria o jogador do Flamengo, para outro patamar. “Virou uma tecnologia que faz parte da nossa identidade. Todo mundo vai a bailes de fim de semana, a juventude vai a bailes há mais de 50 anos. E foram esses senhores aí que inventaram isso. Não é pouca coisa. Faz parte do que é ser brasileiro”.

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Cartaz (Black Rio! Black Power!/divulgação)
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