Fantasma Neon: entre o conforto, o luxo e a inércia
Após passar por cerca de 200 festivais, e ganhar mais 50 prêmios, Fantasma Neon chega ao Globoplay. Mas para que e a quem serve o filme?
Logo depois de lançado, ainda em 2022, o filme Fantasma Neon gerou enorme comoção. Estávamos ainda sofrendo os impactos diretos da pandemia e da intensificação do fenômeno que ficou conhecido como “uberização” do Brasil. O curta-metragem, no entanto, comoveu não apenas pelo tema que aborda, mas sobretudo pela forma como o aborda.
Trata-se de um musical autenticamente brasileiro, com nossos ritmos, cores, questões e talentos. Dirigido pelo carioca Leonardo Martinelli, mestre em Comunicação pela PUC-Rio, o filme leva a ferro e fogo a máxima atribuída ao escritor russo Tolstói: “Fale de sua aldeia e estará falando do mundo”.
Fantasma Neon encara as ruas do Rio de Janeiro não para mostrar suas maravilhas burguesas da Zona Sul, mas para escancarar a podridão a qual tal zona e burguesia submete milhares de pessoas todos os dias para manter-se no conforto dos seus pequenos luxos. Tudo isso é mostrado de forma honesta, direta, poética e muito rica.
A poética e a destreza técnica merecem destaque porque são através delas, e de certa sofisticação, que se valida o discurso do filme, visto que outras produções que tratam do mesmo tema, mas sem os mesmos recursos, não têm nem tiveram o mesmo alcance. Compreender a técnica, poder estudá-la e reproduzi-la ainda é um fator determinante para poder ser escutado nos meios artísticos. Quem pode acessar os meios de produção de conhecimento sobre elaboração de projeto, roteiro, direção, direção de atores, iluminação etc, em geral, não são as pessoas negras e pobres, sobre quem o filme fala.
Ainda merecemos meditar sobre essa questão. Vale ressaltar que Fantasma Neon foi o primeiro filme do ator Dennis Pinheiro, protagonista do curta. Por ele, Dennis venceu o primeiro de melhor ator no Festival de Cinema de Gramado. Há portanto, um reconhecimento absoluto do seu talento e alguma inserção. Mas ainda se faz necessária a construção de garantias não apenas de liberdade artística, mas também material. Afinal, é disso que o filme trata.
Há poucos dias, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva se encontrou com Joe Biden, e juntos lançaram um comunicado no qual defendem a necessidade de “colocar os trabalhadores no centro das decisões políticas”. Segundo o documento, os dois governos e países irão juntos “enfrentar cinco dos desafios mais urgentes enfrentados pelos trabalhadores em todo mundo”: proteger os direitos dos trabalhadores, tal como descritos nas convenções fundamentais da OIT, capacitando os trabalhadores, acabando com exploração de trabalhadores, incluindo trabalho forçado e trabalho infantil; promoção do trabalho seguro, saudável e decente, e responsabilização no investimento público e privado; promover abordagens centradas nos trabalhadores para as transições digitais e de energia limpa; aproveitar a tecnologia para o benefício de todos; e combater a discriminação no local de trabalho, especialmente para mulheres, pessoas LGBTQI e grupos raciais e étnicos marginalizados (…).
Conseguinte às tais palavras soltas ao vento, devemos responder com as perguntas: o que fará o Brasil em relação ao Ifood? O que farão os Estados Unidos da América em relação ao Uber? O sindicato dos roteiristas e atores dos Estados Unidos segue em greve há mais de 100 dias devido às exigências de aumento de salários e benefícios, como de maior proteção contra o avanço da Inteligência Artificial.
No Brasil ainda não chegamos a tanto, mas não são poucas as empresas que seguem utilizando ferramentas para evitar assinar carteira de seus funcionários. Não são poucos os prestadores e prestadoras de serviços, MEIs, que trabalham em condições que justificam terem suas carteiras assinadas. Não são poucas as instituições, inclusive culturais, que alegam não ter interesse ou meios para garantir condições dignas de trabalho e cumprimento das leis trabalhistas.
Ainda impera, inclusive no sistema cultural, a máxima “Não quer? Tem quem queira!”, como sendo uma ameaça a quem ousar exigir direitos. O senso comum nos leva a crer que sempre contratarão outrem. Pode ser verdade, mas também é verdade que mentes brilhantes, como a do filósofo alemão Immanuel Kant, acreditaram ser possível acabar o mundo antes do fim da monarquia. Hoje, Ailton Krenak nos faz perceber que acreditamos ser mais fácil o fim do mundo ao invés do fim do capitalismo. A personagem de Silvero Pereira indaga em Bacurau: “Se não tem a gente pra levar o que eles querem, o que eles vão fazer?”
Também pela voz de um entregador, em Fantasma Neon, ouvimos ironicamente: “É só pedir que tá na sua porta”. Tal frase expressa muito bem o estado do capitalismo, consumismo e ansiedade no qual nos encontramos. E se tratando de um país com um histórico escravocrata como o Brasil, podemos até pensar no resultado de uma cultura de irresponsabilidade, descuido e selvageria para com aqueles que estão em situação de prestação de serviços.
O saudosismo em relação à escravização se expressa também por meio de um desejo de submissão e servidão incondicional, sobretudo em se tratando de pessoas negras e pobres. Não há, por parte da burguesia brasileira, a menor capacidade intelectual, ou mesmo interesse, de desenvolver uma outra relação trabalhista verdadeiramente humana e “civilizada”. A máxima do “eu mereço” ou a busca incessante pelo máximo conforto atingem também muitos prestadores de serviço, empregados, membros da massa assalariada brasileira que, sem se permitir perceber, reproduzem contra os/as semelhantes as mesmas exigências e maus tratos que sofrem do patrão ou da patroa.
Uma reformulação das relações de trabalho passa por estabelecer um outro olhar em relação à vida. Ao que parece, “palhaços líderes brotaram macabros”, não apenas no campo da macropolítica mas também na micropolítica, nas relações interpessoais. Assim, adotamos um ser autoritário que, dentro de nós, reproduz a desumanização que aprendemos do processo colonial expert em escravizar e desumanizar aqueles e aquelas que nos pareçam dessemelhantes.
Talvez Fantasma Neon, em algum nível, elabore uma resposta a isso quando trata de humanizar. Seja mostrando esses entregadores e entregadoras paradas para vermos que não são apenas máquinas em movimento para promover nosso acesso a bens, seja compartilhando sonhos, frustrações, afetos, dançando, cantando, criando e sentindo também. Discutindo construção de direitos, ou militando, com arte e beleza de forma estonteante, as músicas, coreografias, composições, incisivamente a humanização.
Lembro quando estive na abertura de um festival de cinema em São Paulo e exibiram Fantasma Neon na sessão de abertura. Nos assento,s não eram poucas as pessoas vestidas de grifes, com joias, cargos executivos e títulos de burguesia contemporânea. Pessoas que mal conseguiam vislumbrar soluções efetivas para os afetos reclamados no filme porque elas mesmas, entre si, vinham e veem umas às outras como objetos, degraus, meios de acessar bens em benefício próprio. Assistindo tais pessoas assistirem ao filme, pensei sobre o lugar de tudo no mundo. Finalmente Fantasma Neon chega ao Globoplay e mais pessoas, familiarizadas com o formato ou não, poderão acessá-lo, descobri-lo e discuti-lo.