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Karim Aïnouz sobre sucesso de “Motel Destino”: “Não é um filme medroso”

O filme mostra um fugitivo da geração "nem nem" (aquela que não trabalha ou estuda) que busca abrigo em um motel depois de um grande baque familiar

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 20 set 2024, 11h48 - Publicado em 17 set 2024, 09h00
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Heraldo (Iago Xavier) e Elias (Fábio Assunção) em cena de "Motel Destino" (IMDB/reprodução)

Na abertura de Motel Destino, o mais recente filme de Karim Aïnouz, o Sol domina, ou melhor, inaugura a cena. Ele incendeia a areia de uma praia cearense, banha os corpos de dois rapazes que sorriem, se divertem e sugerem até uma disputa de capoeira. A falta de sombra não parece incomodá-los. Parece não haver espaço para preocupações. Logo, eles mergulham no mar, em um momento que sugere liberdade e alegria. A vida parece boa. Descobrimos rapidamente que são irmãos: Heraldo e Jorge. A escolha de introduzir os personagens dessa maneira parece inocente, mas simboliza o único instante de verdadeira liberdade para esses dois homens.

Os irmãos compartilham sonhos e planos. “Você vai ser o padrinho do primeiro [filho]”, diz Jorge. Heraldo responde com uma ponta de dúvida: “Padrinho à distância, será que dá certo?” Eles estão prestes a se separar. Heraldo deseja abandonar a vida na praia e partir para a cidade, enquanto Jorge planeja ficar e construir uma família ali mesmo. Aparentemente, é uma decisão simples, sem grandes obstáculos, mas essa é apenas uma ilusão. Ao voltarem da praia, encontram-se em um casarão com Bambina, uma mulher mais velha, e logo aparece um rapaz com um fuzil pendurado no ombro. As peças começam a se encaixar: aquilo não é uma família, nem aquele um lugar tão tranquilo.

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(IMDB/reprodução)

Bambina, na verdade, é a líder de uma organização criminosa, e Heraldo e Jorge são seus capangas. Descobrimos mais tarde que ela também é uma pintora muito conhecida na cidade. “Quer se mandar, se manda. Mas a gente vai ter que acertar algumas contas”, diz ela a Heraldo. Este é o primeiro conflito que Karim apresenta no longa. A vida de Heraldo vai se complicando cada vez mais, especialmente quando Bambina ordena que os irmãos eliminem um antigo rival. É um último trabalho que ela exige do rapaz: “É serviço para dois”, afirma.

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Na noite que parece selar seu destino, Heraldo conhece uma garota em um bar. Eles bebem, dançam e passam a noite juntos no Motel Destino. Na manhã seguinte, ele descobre, desesperado, que foi roubado por ela. Sem dinheiro e sem permissão para abandonar o motel, ele ameaça a recepcionista, propondo um acordo para pagar sua dívida. Esses contratempos o atrasam para a missão, e Jorge, que foi sozinho, não sobrevive à tarefa.

A partir desse ponto, a vida de Heraldo desmorona. Ele se torna um fugitivo e busca refúgio no Motel Destino. Sem conhecer o passado de Heraldo, Daiana (Nataly Rocha), que inicialmente pensamos ser a recepcionista, mas que é uma das proprietárias do motel, se compadece e o acolhe. Seu sócio e esposo, Elias (interpretado por Fábio Assunção), não se opõe a abrigar Heraldo e até parece ter outros interesses nele. “Ele é gato?”, pergunta Elias à esposa antes de conhecer Heraldo.

A partir desse momento, o filme sofre uma profunda transformação, tanto narrativa quanto tecnicamente. Os planos abertos e ensolarados da praia e das palmeiras dão lugar aos quartos escuros e claustrofóbicos do motel. Naquela nova realidade, apenas quatro personagens parecem existir: Heraldo, Daiana, Elias e Moco, o funcionário do plantão noturno.

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Nataly Rocha, Iago Xavier e Fábio Assunção em cena de “Motel Destino” (IMDB/reprodução)

Uma celebração da pornochanchada

No início do ano, o longa estreou mundialmente no Festival de Cannes, onde disputou a Palma de Ouro, concorrendo com diretores como Yorgos Lanthimos e Francis Ford Coppola. Ali mesmo, Karim declarou que com Motel Destino gostaria de homenagear a pornochanchada, gênero que nasceu no Brasil nos anos 1970 e mesclava comédia com pornografia.

Em Motel Destino, trata-se de um suspense dramático com traços de pornografia. Para ser mais claro, o filme é carregado de cenas de sexo, mas nada que assuste uma geração que cresceu assistindo Domingo Legal à tarde, na companhia da família. Afinal, não poderia ser muito diferente; as diversas sequências de sexo se justificam pela escolha do cenário, já que boa parte do filme se passa em um motel. Mas para Karim, há também uma razão política para reavivar esse estilo.

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Karim Aïnouz (IMDB/reprodução)

“Esse é o único caminho que podemos tomar depois do que vivemos no Brasil politicamente. Temos que celebrar a alegria, a liberdade, a possibilidade de ser. Além disso, a pornochanchada tem um jeito peculiar de ser. É impressionante que um gênero como esse tenha surgido na ditadura”, declarou o diretor em uma rápida entrevista à Bravo!.

Ele explica que essa foi uma estratégia que faz referência à história recente brasileira. “Acho que foi muito importante depois que passamos por um contexto tão conservador. Vivemos no Brasil um momento de grande conservadorismo e medo. A pandemia fez com que ficássemos paralisados, com medo, e com muita razão. Este filme vem um pouco para celebrar o oposto. Você pode dizer o que quiser sobre este filme, mas ele não é um filme medroso.”

A celebração foi tanta que, inclusive, aconteceu no tapete vermelho, antes da exibição do filme em Cannes, onde parte do elenco dançou ao som da banda “Aviões do Forró”.

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Além de brincar com diferentes gêneros, Karim desejava refletir sobre um determinado grupo populacional. “É um filme que tenta abordar a realidade da geração ‘nem-nem’, a relação do jovem que cresceu em um contexto onde teve acesso ao Bolsa Família e à educação. A questão é: para onde essa geração foi? O filme se preocupa muito em entender isso; esses grandes temas sempre me interessaram. O que é o futuro, afinal? Na época, a gente pensava que o futuro seria linear, que essa geração ia crescer, trabalhar e ocupar espaços. O personagem Heraldo é muito construído em cima dessa ideia”, explica Karim.

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Nataly Rocha interpreta Dayana (IMDB/reprodução)

O projeto, que começou antes da pandemia, sofreu um golpe no meio do caminho durante o governo de Jair Bolsonaro, com uma desaceleração drástica no setor audiovisual, cortes orçamentários e atrasos na liberação de recursos.

“Quando o filme voltou, parecia ter mais eletricidade, mas ele foi paralisado por conta de uma urgência naquele momento. Não era exatamente a urgência atual. Ele foi interrompido pela pandemia e pela suspensão de editais que havíamos assinado. Como todos os filmes do Brasil, ele foi paralisado porque havia um projeto de sufocar a produção cultural. Esse processo foi bastante evidente.”

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A impossibilidade de dar andamento aos projetos no Brasil impulsionou os projetos no exterior, mas nunca houve a intenção de abandonar o país, ele ressalta. “Dei uma entrevista há pouco tempo, e o título da matéria dizia que eu estava com vontade de filmar no Brasil novamente. Não é que fui embora para Hollywood. Não foi isso que aconteceu. Não estou lá como uma figura que abandonou o Brasil, entende? Não sou Carmem Miranda, com todo respeito a ela, mas eu simplesmente não pude filmar no Brasil. A vontade de filmar no Brasil não surgiu porque eu decidi fazer carreira internacional ou porque fui fazer um filme fora, mas sim porque não havia outra opção.”

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cartaz de “Motel destino” (IMDB/reprodução)

Apesar do atraso e da frustração, a interrupção do filme devido ao contexto político gerou no diretor e no elenco a gana de voltar a filmá-lo. “Acho que o que mudou foi uma sensação de exuberância que ele adquiriu quando voltou à vida, como alguém que esteve preso e, ao ser solto, tem fome de viver novamente.”

Recentemente, Motel Destino foi anunciado como um dos filmes habilitados para disputar uma vaga como Melhor Filme Internacional no Oscar. Como estratégia, faz sentido que o filme esteja na lista final da Comissão de Seleção brasileira, pois possui alguns fatores a seu favor: carrega prestígio por ter passado por um dos maiores festivais de cinema, o que o torna mais conhecido, um ponto a mais na campanha do filme. Além disso, destaca-se pela sua qualidade.

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Mais do que o roteiro, o filme se sobressai por seus atributos estéticos, incluindo a fotografia e o estilo visual que homenageia os filmes da década de 1970. Suas belíssimas cores, que oscilam entre o amarelo, o vermelho e o azul, criam uma poderosa identidade visual à la Almodóvar. Tão fortes que sugerem um novo momento na carreira de Karim. Desde o lançamento de Madame Satã em 2002, Karim Aïnouz se consolidou como um dos maiores cineastas brasileiros, e Motel Destino reforça essa reputação.

Embora a condução da narrativa não surpreenda por seguir uma trajetória relativamente familiar, o filme não busca necessariamente a originalidade. Em vez disso, Motel Destino realiza muito mais um exercício de memória e uma celebração da história do cinema brasileiro, e nesse aspecto, o faz com excelência.

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