Como “Dom Casmurro” inaugurou a moderna ficção brasileira
História sobre o ciúme, o adultério e a dúvida é obra-prima da narrativa psicológica de Machado de Assis e revela os frágeis limites da condição humana
Lançado 18 anos após Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro (1899) é, numa primeira instância, um tanto diferente da obra com que Machado de Assis inaugurou a moderna ficção no Brasil. Não há experimentações formais, a história é contada em ordem cronológica e parece centrar-se mais no retrato psicológico de seus personagens.
De fato, o desenho dos estados internos de consciência, o quadro das motivações ocultas e a exposição dos sentimentos (o amor, o ciúme, a desilusão) animam o andamento do romance. Mas, como fez em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado insere um narrador caprichoso, que manipula a história para seu proveito.
Bentinho, o Dom Casmurro do título, conta sua trajetória a partir da infância, centrando-se na narração de sua amizade com a vizinha pobre, Capitu, com quem acaba se casando. Com o correr dos anos, Bentinho se convence de que a mulher o trai com o amigo Escobar. Assim, a história serve para apontar elementos que corroboram a suspeita: o transtorno de Capitu com a morte de Escobar (seus “olhos de ressaca” a teriam denunciado) e a semelhança do filho com o suposto amante são alguns deles. Capitu, porém, refuta a acusação, de sorte que a dúvida paira no ar até hoje, com defensores de ambos os lados: teria ela traído ou não o marido? A modernidade de Dom Casmurro reside justamente nessa ambiguidade insolúvel.
Os patrocinadores de Capitu (e detratores de Bento) mostram que o filho de D. Glória, à semelhança de Brás Cubas, age em consonância com sua classe. Membro da elite patriarcal, está acostumado a que os subordinados (a esposa, inclusive) acedam aos seus caprichos. Mas Capitolina é voluntariosa, plantando no coração do herdeiro a semente não da dúvida sobre a traição amorosa, mas de algo mais insidioso, pois oculto: a usurpação de seu poder. Bentinho, claro, não suspeita disso, mas o leitor pode farejar a hipótese nos desvãos da narrativa. É claro que essa leitura, mais sociológica, é apenas uma das possíveis sobre o romance, que tem inegáveis qualidades estritamente literárias.
Nunca se há de chegar a uma conclusão definitiva sobre a traição de Capitu. O que importa, porém, é o fato de Bentinho, igualmente impossibilitado de dispor da prova definitiva, ter optado pela acusação e por construir a história a fim de validar sua hipótese — e sua decisão existencial, pois ele prefere a separação a viver com a dúvida da mácula (ou com a própria mácula). A dúvida não se dissipa, porém, e junto com o remorso oculto (pela falta que ele pode ter cometido) corrói-lhe a alma, transformando-o no ser sorumbático configurado no epíteto Dom Casmurro.
Constata-se, assim, que a verdade jamais pode ser apreendida em sua plenitude. A inovação de Machado foi ter investido nas inconstâncias de um narrador não confiável, demonstrando que é o ponto de vista que determina, em última análise, a realidade, e que os procedimentos do observador atraiçoam, por princípio, a própria observação.
Após Dom Casmurro, Machado publicou Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), que, com Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba (1892), compõem o famoso quinteto de sua fase madura.
Este texto faz parte da coleção especial “100 livros essenciais da literatura”, publicada pela Bravo! em 2008