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Jamil Chade assina biografia do pianista João Carlos Martins

Livro "O indomável: João Carlos Martins, entre som e silêncio" é publicado pela Editora Record; Leia um trecho com exclusividade na Bravo!

Por Redação Bravo!
17 Maio 2024, 11h00

Um dos grandes lançamentos literários deste mês é a biografia do pianista João Carlos Martins, escrita pelo jornalista e escritor Jamil Chade. O indomável: João Carlos Martins, entre som e silêncio (Ed. Record) percorre a infância de Martins, sua longa dedicação ao estudo da música, especialmente à obra de Johann Sebastian Bach, suas breves transições de carreira, e sua consagração como um dos maiores intérpretes da música clássica.

A publicação começa em ritmo de thriller com uma inesperada fuga de Cuba, sob o temor de uma possível invasão norte-americana, e também aborda a fase em que ele foi forçado a parar de tocar devido a uma doença neurológica misteriosa que afetou o movimento das mãos.

Confira abaixo um trecho do livro O indomável: João Carlos Martins, entre som e silêncio com exclusividade na Bravo! a seguir:

NOITES CUBANAS 

Señor Martins, señor Martins… despiértese.  

Com voz tímida e aveludada, Concepción rompia o silêncio da madrugada cubana que, até então, ecoava pelos corredores da Embaixada do Brasil em Havana. A brisa, sem respeitar qualquer tipo de cadência, levava para os aposentos sugestões de que o mar não ficava longe dali. 

Mas, naquela noite em meados de abril de 1961, o que era primeiro apenas um sussurro sincopado crescia conforme a angústia tomava conta do pequeno corpo da governanta.

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Concepción, uma das mais antigas funcionárias da Embaixada, tinha uma missão urgente: acordar o jovem rapaz que havia desembarcado em Havana dias antes para consolidar sua carreira internacional como pianista. Ele precisava fugir. 

Sem resposta diante de seus apelos cada vez mais enfáticos, a cubana decidiu entrar no quarto onde estava o músico e, chacoalhando seus ombros, explicou que não tinham tempo a perder. 

João Carlos Martins colocou os óculos, na esperança de entender se ainda estava no meio de um sonho. Praticamente, não havia dormido. Horas antes, era aclamado no principal teatro de Havana e em seguida, na companhia de uma mulher designada pelo governo local como sua acompanhante e de uma garrafa de rum, descobriria, aos 20 anos, o fascínio das praias desertas do mar caribenho, regadas a beijos. 

Como uma cena do realismo fantástico latino-americano, a interrupção do silêncio, do sonho e do amor da noite cubana tinha um motivo urgente. O corpo diplomático estrangeiro havia sido informado que poderia ocorrer nos dias seguintes uma possível invasão da ilha, e os últimos voos comerciais para deixar Cuba estavam quase todos já lotados. 

*

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Fidel Castro estava no poder havia dois anos, depois de uma revolta que coloriu o imaginário coletivo e uma revolução que derrubou o ditador Fulgencio Batista. Em plena Guerra Fria, a luta contra o regime opressor ganhou dimensão geopolítica sem precedentes na região. E deu início a uma nova ditadura. 

João sabia onde estaria se metendo quando escolheu se apresentar em Cuba. A decisão de viajar para Havana não foi por acaso. Naquele momento, o jovem pianista estava na verdade a caminho dos Estados Unidos, país que, nos anos seguintes, seria seu principal palco para seu primeiro concerto acompanhado por uma orquestra – a National Symphony orquestra, de Washington. 

O concerto em Washington, marcado para o dia 22 de abril, seria presidido pela primeira-dama americana, Jacqueline Kennedy, na Howard University, e regido por Howard Mitchell. Mas o brasileiro, obcecado pela leitura dos jornais e consciente da situação política mundial, decidiu que antes da capital do poder ocidental, ele passaria pela capital da revolução comunista. 

Por qual motivo um pianista não poderia fazer isso?, se questionava.

A decisão surpreendeu a família, conhecida pelo conservadorismo e comprometimento com a Igreja católica. O pai, que insistia que a cultura fizesse parte da formação dos filhos, considerava a ideia ameaçadora, com o risco de ser interpretada como um gesto de simpatia ao comunismo e que poderia ter como consequência um veto à entrada em território americano do jovem brasileiro. Para ele, constituía um grave erro se colocar em situação de ser barrado pelo centro do poder financeiro, político e cultural da época. 

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Para alcançar seu propósito, João contou com a ajuda do jornalista norte-americano Henry Raymont, correspondente em Cuba da agência United Press International (UPI). Anos depois, o repórter seria detido por vários dias pelo regime castrista, sob a alegação de ser um espião. O próprio governo de Jânio Quadros entrou em cena para garantir a realização do recital, transformando a viagem para Havana numa espécie de escala diplomática. 

O presidente brasileiro mantinha uma Política Externa Independente, como ficou conhecida, estratégia que visava encontrar espaço para o desenvolvimento do país sem ter de se aliar nem aos americanos nem aos soviéticos. Naquele mesmo ano, ele condecoraria Che Guevara, então ministro da Economia de Cuba, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Durante seu breve mandato, entre janeiro e agosto de 1961, restabeleceu relações diplomáticas com a Hungria e a Romênia e aproximou-se da Bulgária e da Albânia, então sob influência soviética.

João Carlos Martins, portanto, não estava partindo apenas para um concerto. Ele integrava um intrincado plano de redefinição da inserção do Brasil no mundo. O que jamais imaginou é que chegaria à ilha num momento crítico da história da América Latina no século XX. 

O recital teve amplo sucesso e repercussão impressionante na imprensa local. Os cubanos reconheceram a genialidade do pianista brasileiro e o transformaram em celebridade. No programa oficial daquela noite de 10 de abril, João foi apresentado como “um dos mais importantes intérpretes jovens revelados nos últimos anos”. 

Diante de uma plateia lotada e repleta de jovens na sala Hubert de Blanck, ele iniciou com o “Prelúdio nº 6” e a “Fuga no 6” de O cravo bem temperado, volume 2, de Johann Sebastian Bach, sua especialidade e paixão. Na primeira parte do concerto, ainda houve Mozart e Beethoven, um programa essencialmente europeu e tradicional. João, como ocorreria em toda a carreira, queria mostrar que não existia ideologia nem complexo de inferioridade ao executar obras do Velho Continente. A arte, universal, não deveria ser subjugada por fronteiras ou bandeiras políticas. Mas, na segunda parte, fez clara e deliberada homenagem aos compositores latino-americanos Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e o argentino Alberto Ginastera – e tocou uma obra de Serguei Prokofiev, convenientemente incluída no repertório do pianista. 

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Não se tratava apenas de mais uma noite musical em Havana. Ao olhar para a plateia, o pianista sabia: estava ali também como representante de um governo aliado. Havia a expectativa de que o próprio Fidel Castro estivesse presente. Raul Castro, porém, representou o comandante ocupando uma das principais fileiras do teatro ao lado da cúpula do governo cubano. Naqueles meses, Che Guevara já estava na América do Sul em suas operações de insurreição.

Com sanções e embargos americanos ainda incipientes, o palco do teatro exibia o que de melhor havia naquele início dos anos 1960 no mundo: um piano Steinway e equipamentos de gravação modernos. Heranças de uma Cuba que acolhia orquestras e que era o epicentro de grandes festas para famílias que, distantes do sol escaldante e da massa de cubanos miseráveis, se protegiam em salões com ar condicionado, uma riqueza efêmera. Na plateia daquela noite, estavam presentes embaixadores dos países integrantes do bloco soviético e parte da elite cubana que havia apoiado a revolução, em troca de alguns privilégios.

A festa continuou depois do recital, na própria Embaixada do Brasil. João foi recepcionado por um evento de gala, em que tocou de novo enquanto algumas mulheres, com vestidos longos e usando diamantes, circulavam entre cubanos com uniformes militares. 

Naqueles salões, ficava claro que, pelo menos nos primeiros anos da revolução, parte da oligarquia que optou por não deixar Havana mantinha relações com os novos donos do poder. Nas rodinhas de conversas regadas a álcool, que misturavam os diferentes grupos da sociedade, não faltavam brincadeiras e chistes.  

A presença de Raul Castro na festa reforçava a importância política do evento e foi interpretada na época como sinal evidente de que Havana tinha a esperança de atrair o “gigante sul-americano” para seu lado na disputa ideológica com os americanos. O Brasil era a grande meta da diplomacia cubana e, não por acaso, o pianista foi convidado de honra – ao lado de embaixadores estrangeiros – em um discurso de Fidel Castro. Foram mais de cinco horas entre gritos de “Cuba sí, yankees no” sob calor sufocante. Outra frase que ecoou era um recado à Igreja católica: “Si los curas no cortan caña, que se vayan a España.” (Se os padres não cortam cana, que voltem para a Espanha.)

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Durante aqueles dias, João entendeu que Jânio Quadros tinha potencial de obter status de vice-rei na ilha; para os cubanos, até as camisas que o presidente brasileiro usava eram consideradas sinais de sua proximidade aos ideários da revolução. 

Em outro momento da viagem, o pianista foi também levado ao tribunal para assistir à audiência de julgamento de um jovem de 18 anos acusado de atacar as instituições com granadas. O jovem brasileiro testemunhou com surpresa a condenação à morte, praticamente de forma sumária, do rapaz, que se autoproclamava inocente. 

No dia 14 de abril de 1961, a edição do jornal Combate, de Havana, refletia a excitação artística e política que João havia causado em Cuba. Num artigo, ele recebeu uma chuva de elogios, entre eles o de que Havana havia escutado um pianista que, sem dúvida alguma, teria repercussão mundial. 

Seguindo a linha do regime castrista, o jornal destacou o repertório de “compositores irmãos” dos cubanos. “A voz musical de nossa América vibrou no teclado do solista a alturas que ninguém deve ter inveja de outras regiões”, afirmou. Citando sua “técnica impressionante”, “elegância etérea na interpretação de Mozart” ou “habilidade virtuosa” na de Beethoven, a crítica cubana exaltava o fato de a noite ter sido encerrada com a apresentação de uma sonata de Ginastera ainda inédita no país. E terminava afirmando de modo enfático que os cubanos não sabiam quando voltariam a ver João Carlos Martins. Mas que sabiam que, na próxima ocasião, ele estaria “respaldado de fama internacional”.

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