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Livro revela que 83% dos filmes de cineastas negros vieram depois de 2010

Em artigo exclusivo para a revista Bravo!, o pesquisador e idealizador do livro Cinemateca Negra analisa nove décadas de produção cinematográfica

Por Heitor Augusto
Atualizado em 28 jun 2024, 17h11 - Publicado em 17 nov 2023, 10h52

“Cinemateca Negra”, publicação que teve o pré-lançamento digital durante o Festival NICHO Novembro 2023 e que chega ao público na versão impressa em junho de 2024, opera múltiplas reparações. Ao reunir pesquisa, análise de dados, ensaios de fôlego, lista de filmes e de diretores, a obra representa a maior investigação já feita acerca da realização cinematográfica negra no Brasil, devolvendo-lhe a relevância adequada.

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Capa do livro “Cinemateca Negra”, organizado por Heitor Augusto e que será publicado em 2024 pelo Instituto Nicho 54 (Heitor Augusto/divulgação)

A história da realização cinematográfica negra constitui o cinema brasileiro, ainda que tal relação tenha sido negligenciada pelos agentes do campo, entre os quais estão Academia, imprensa e policymakers. O livro “Cinemateca Negra” oferece formas para entender e repensar essa relação ao ultrapassar o paradigma da escassez. Além disso, a publicação se soma aos esforços da produção intelectual negra contemporânea que, ao “desapagar” e combater a invisibilização, tem retirado do discurso público a escusa da ignorância e do desconhecimento, especialmente entre especialistas.

Nove décadas de histórias negras

“Cinemateca Negra” está dividida em duas partes. Na Parte I apresentamos cinco textos comissionados junto a pesquisadores e jornalistas negres trabalhando dentro e fora de espaços acadêmicos. Questões como preservação da memória, curadoria e festivais, formação do gosto estético, luta por representações verossímeis e mundo do trabalho perpassam esses textos. Proposições como a contribuição de Beatriz Nascimento para o campo dos estudos do Cinema Negro, o chamamento para uma prática de preservação que evite o desaparecimento dos filmes realizados digitalmente nas últimas duas décadas ou a necessidade de um olhar engajado com todas as facetas do nosso passado dão a essa publicação a marca da inquietude e da disrupção propositiva.

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Já a Parte II da publicação promove esforços de análise quantitativa. Após oito meses de trabalho sob minha liderança, mapeamos 1086 longas, médias e curtas com direção negra entre 1949 e 2022. Cada um desses filmes é listado na publicação, com informações acerca do ano de produção, gênero cinematográfico, formato e direção.

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Cena do filme “Estamos Todos Aqui” (Rafael Mellim e Chica Andrade/divulgação)

Uma história em números
A história da realização cinematográfica negra no Brasil tem, ao menos, nove décadas. Destaco a nuance do “ao menos”. Até o momento, José Cajado Filho (1912-1966), nome incontornável na construção da chanchada enquanto gênero cinematográfico, é tido como o primeiro cineasta negro. Contudo, nosso projeto não toma essa afirmação como se fosse inscrita em pedra. Pelo contrário, entendemos que, quanto mais pesquisas forem realizadas, novas rotas de pioneirismo serão reveladas. Afinal, se até mesmo a incursão feita pelo escritor Lima Barreto no roteiro cinematográfico foi revelada apenas em 2022, muitos outros rastros serão “desapagados”.

Se o mapeamento de 1086 filmes traz visibilidade às obras e seus realizadores, a análise de dados permite a compreensão complexa dessa história. Dos 1086 filmes mapeados, 12% são longas-metragens, 84% curtas e 4% médias. A super-representação da direção negra nos curtas e a subsequente sub-representação nos longas indica a dificuldade encontrada por talentos negros para acessar postos de maior prestígio, como a direção de um longa. As raízes do problema são profundas e o audiovisual, apesar de tido como campo progressista, reflete com nitidez o racismo estrutural da sociedade brasileira.

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Cena do filme “Marte Um”. (Filmes de Plástico/divulgação)

Desses filmes, 43% são documentários, 38,5% ficções, 13% experimentais, 2,8% animações e 2% híbridos. Se no universo total de obras mapeadas as porcentagens entre documentários e ficções são próximas, a distância aumenta quando analisamos exclusivamente longas-metragens. Nesse formato, 56% são documentários, enquanto apenas 42% são ficções. Considerando que a realização de obras ficcionais implica a necessidade de mais recursos, novamente os dados dão contornos que tornam o problema palpável.

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(Nicho 54/divulgação)

Em sete décadas de produção, torna-se palpável também a importância de políticas públicas e ações afirmativas dentro e fora do audiovisual: 83% da produção total mapeada foi realizada entre os anos de 2010 e 2022. A pesquisa revelou também aspectos importantes da representação de identidade de gênero – incluindo a produção de pessoas trans – e da coprodução entre negres e não-negres. Todas essas informações são detalhadas ao longo de oito gráficos, construídos em parceria com Marcelo Soares, fundador da Lagom Data e um dos pioneiros do jornalismo de dados no Brasil.

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(Nicho 54/divulgação)
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Cena do filme “Aurora”. (Cinemateca Negra/divulgação)

Um projeto, quatro fases
Novembro de 2023 marca o pré-lançamento digital da Fase I de “Cinemateca Negra”, que teve o indispensável apoio do escritório para a América Latina e Caribe da Open Society Foundations. Em 2024, a publicação será lançada em versão impressa. A partir do ano que vem também serão desenvolvidas as estratégias de difusão, de forma a garantir que o projeto tenha uma capilaridade à altura da publicação.

Também está no horizonte da instituição organizadora NICHO 54 a transformação dos números em um banco de dados acessível ao
público em geral. A publicação solidifica o papel do NICHO 54 em atividades relacionadas ao campo da preservação enquanto interlocutor propositivo e agente transformador para a realização negra. “Cinemateca Negra” é também um fato político, pois contribui para o incentivo à pesquisa e preservação dessa produção e trabalha em prol da diminuição da lacuna entre realizadores que guardam materiais acerca de suas obras e instituições de preservação e acervamento.

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Cena do filme “Um é Pouco, Dois é Bom”. (Odilon Lopez/divulgação)

“Cinemateca Negra” atende diferentes necessidades: intelectual, por trazer reflexões relevantes ao campo do Cinema Negro e do cinema brasileiro; política, por estabelecer numericamente a relevância da realização cinematográfica negra e oferecer dados que podem alimentar uma prática preservacionista; subjetiva e sensível, por publicar os nomes dos realizadores negres mapeados e uma lista de suas respectivas realizações; afetiva, por oferecer a leitores negres a possibilidade de sentir-se pertencente a uma história de feitos relevantes.

Além disso, deixa uma insuspeita contribuição para que os currículos dos cursos de cinema e audiovisual promovam uma perspectiva de fato diversa do cinema brasileiro. Na condição de idealizador de um projeto que deu seus primeiros passos em 2018, estou orgulhoso por oferecer ao campo do Cinema Negro e do Cinema Brasileiro uma relevante contribuição que se alimenta do legado de outros trabalhadores para tornar-se, pois, também um legado.

*Heitor Augusto atua nas intersecções entre curadoria, pesquisa, crítica, consultoria e tradução desde 2008. Realizou trabalhos no Brasil, Estados Unidos, França, Canadá e Alemanha. É cofundador e programador-chefe do NICHO 54, instituto que atua em prol da presença negra e da equidade racial no audiovisual brasileiro.

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Heitor Augusto, autor do livro “Cinemateca Negra”. (Heitor Augusto/arquivo)

 

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