Mariana Salomão Carrara, autora confirmada na Flip 2024, destrincha processos de escrita
Em "A árvore mais sozinha do mundo", a autora traz narradores não humanos para abordar o cotidiano de uma família de fumicultores no Sul do Brasil
Uma árvore sofre por não poder expressar o que sente e por não entender tanto do amor como os humanos, um antigo espelho lusitano reflete as inseguranças e as variações de humor daqueles que passam por ele, um velho automóvel se diverte ao levar e trazer seus proprietários, e um uniforme lamenta por ser velho e não oferecer a proteção necessária à sua dona. O que todos esses objetos têm em comum, além dos sentimentos, é estarem profundamente entrelaçados ao cotidiano de uma família: os pais, Guerlinda e Carlos, e os filhos — a vaidosa Alice, a mais velha, a esperta Maria e o pequeno, mas sensível, Pedrinho. Esta é uma família de fumicultores que vive no sul do país. Estes são alguns dos elementos que compõem o inventivo eixo narrativo de A Árvore Mais Sozinha do Mundo (Todavia), novo livro de Mariana Salomão Carrara.
Com exclusividade para a Bravo!, ela revela que será uma das autoras convidadas da programação oficial da Flip 2024, que acontece pela primeira vez de 9 a 13 de outubro e presta homenagem ao legado de João Do Rio. Na ocasião, Carrara ela desvelará seu novo romance — que já nasce como um símbolo da ousadia e originalidade. Também estarão por lá outras figuras aguardadas pelo público como o francês Édouard Louis, autor de best-sellers autobiográficos “O fim de Eddy” (2014) e “Quem matou meu pai” e a filósofa e italiana Ilaria Gaspari, que lançará seu terceiro livro no Brasil, A reputação (Âyiné), um romance que investiga sonhos e fraquezas, equilibrando comédia e profundidade emocional diante de um boato que se espalha.
O pano de fundo de A Árvore Mais Sozinha do Mundo é uma rica denúncia sobre uma possível epidemia de depressão entre famílias de agricultores no Rio Grande do Sul. Esse, aliás, foi o estopim para que começasse a esboçar o novo livro. O encontro com o tema ocorreu antes da pandemia de Covid-19, quando leu uma matéria relacionando o aumento de suicídios entre agricultores e o uso de agrotóxicos, especialmente entre os plantadores de fumo.
Nos últimos três anos, desde que saímos da pandemia, ela escreveu e publicou É Sempre a Hora da Nossa Morte, Amém (2021) e Não Fossem as Sílabas do Sábado (2022), com o qual venceu o Prêmio São Paulo de Literatura e atingiu o grande público.“Estava pesquisando o suicídio para Sílabas [Não fossem as sílabas do sábado] em 2019, e por isso surgiu essa matéria da BBC [de Paula Sperb] sobre o tema entre agricultores. Fiquei intrigada com a contaminação gradual por agrotóxicos e comecei a pesquisar, o que realmente chamou minha atenção. Durante a pandemia, pesquisei para esse livro enquanto escrevia outro. Eram páginas, links e trabalhos acadêmicos sobre a ergonomia da colheita, para formar uma noção abrangente sobre o tema”, conta enquanto conversa comigo na cozinha de sua casa, em um apartamento na região central de São Paulo. Ao redor dela, seus três simpáticos cães: Lori Lamby, Tabu e Amélia.
Em entrevista à Bravo!, a escritora também revela que carrega consigo certa culpa por não conseguir dedicar o tempo que gostaria à sua escrita, que geralmente acontece aos finais de semana ou durante as férias. Explico: é que ela se divide entre duas profissões. Quando não está escrevendo ficções, veste as roupas de Defensora Pública. Desde 2011, trabalha na Defensoria, atualmente focando no Direito de Família.
“Durante o final de semana, sou muito engajada com o livro, quando ele flui bem, porque, se preciso de muita criatividade, a Defensoria Pública pode ser um obstáculo. Sei que tenho trabalho acumulado, então, sempre que abro o computador, algo me chama a atenção. A intenção é dar uma sensação de ‘agora vamos para a ficção’, mas não consigo desconectar totalmente. Durante as férias, a imersão é muito mais profunda”, conta.
A escolha pelo Direito veio da convicção de que a carreira poderia trazer estabilidade financeira, mas desde muito pequena Mariana tinha vocação para as letras. Começou a escrever antes mesmo de se tornar uma leitora ávida. “Meu pai ficava bravo porque eu dizia que não tinha tempo para ler, pois estava ocupada escrevendo minhas próprias histórias.”
Mariana Salomão Carrara é tímida, tem uma fala apressada que tenta acompanhar seu pensamento ágil. É uma pessoa com jeito simples, capaz de alternar com naturalidade entre assuntos corriqueiros e temas sofisticados, como sua construção literária. Não parece se levar pela vaidade de ter publicado diversos livros elogiados pela crítica especializada.
Ainda no Direito, ela enfrentou algumas decepções e precisou ajustar seu percurso. “Quando entrei na faculdade, tudo parecia muito árido e fora do meu alcance imaginativo. Então, em 2006, abriram a Defensoria Pública em São Paulo, e pensei: ‘Isso eu consigo fazer. Se eu quiser continuar no direito, verei a prática e como o direito impacta a vida das pessoas, e é isso que me interessa.’” No início, trabalhou na área Criminal, lidando com histórias mais assustadoras. Depois, atuou com jovens na Vara da Infância e Juventude.
No mesmo ano em que foi convocada pelo dificílimo processo da Defensoria, foi aprovada no curso de Letras na USP, conseguindo conciliar as duas atividades durante um ano. Embora tenha desistido do curso, foi nesse período que passou a se dedicar intensamente à carreira literária.
Entre todos os textos, A Árvore Mais Sozinha do Mundo foi o que mais exigiu planejamento. Desde o início, Mariana sabia que queria trabalhar com narradores não humanos. Além do estudo técnico sobre a conexão entre agrotóxicos e depressão, ela realizou um trabalho de campo para conhecer a realidade dessas pessoas. “Assim que me vacinei, fui tirar férias no Rio Grande do Sul. Visitei lavouras simples. A situação é muito delicada; a menos que estejam em condições muito precárias, muitos têm uma falsa sensação de que estão em uma profissão lucrativa. Não gostam de falar mal, e dizer que trabalham em condições análogas à escravidão fere a honra, mas eles trabalham para pagar dívidas.”
Nesse processo, ela se aproximou de uma família de agricultores e passou um dia na lavoura com eles. “Fiquei um dia inteiro com um casal, numa lavoura, e eles me mostraram a rotina, os porcos, a estufa. Já tinha estudado muito o assunto, então sabia fazer as perguntas certas. Fui acompanhada por uma filha deles, engajada com orgânicos, que estava indo em uma direção oposta.”
A jovem, que não teve seu nome revelado, foi contratada para fazer a leitura final do livro e fornecer feedback sobre a verossimilhança da escrita com a realidade das famílias. Apesar da proximidade, os personagens não foram inspirados naquela família. “Eles narravam a rotina, e parecia algo muito cansativo, mas contavam isso com felicidade, muito satisfeitos com a vida que levam.”
Na família fictícia de A Árvore Mais Sozinha do Mundo, os efeitos nocivos do contato com o veneno na plantação aparecem sutilmente, entre um causo e outro, quando a árvore fala da tristeza ou apatia do patriarca, ou da fragilidade do filho mais novo. Como uma boa escritora, Carrara consegue equilibrar o tema central do livro com as personalidades de cada personagem, vivos ou não, seus sonhos e todo o universo material que sustenta aquela vida. Consegue fazer algo que muitos autores almejam: nos apaixonarmos por suas personagens.
Carrara conta ainda que não consegue planejar sua escrita. Ela vem muito mais como um improviso, permitindo-se escrever em fluxo para depois aparar as arestas e fazer os ajustes necessários. “Tenho a sensação de que só descubro que estou escrevendo quando as palavras aparecem na tela. Não paro para pensar ou articular antes; por isso, acho que a velocidade próxima ao pensamento é importante para mim. Mesmo sendo o livro que mais planejei, não conseguia determinar o que ia acontecer ou o que os personagens iam dizer; era algo que saía na escrita. É um encadeamento muito espontâneo, o meu escrever é assim.”