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OLÁ,

Os bastidores da despedida de João Carlos Martins no Carnegie Hall

Jamil Chade acompanha a emocionante preparação do maestro brasileiro para seu último concerto no lendário palco nova-iorquino,

Por Jamil Chade
Atualizado em 9 Maio 2025, 16h55 - Publicado em 9 Maio 2025, 09h00
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João Carlos Martins em frente ao Carnegie Hall, onde irá se apresentar no próximo 9 de maio (Jamil Chade/reprodução)
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Mais de 50 anos depois de sua estreia no mítico Carnegie Hall, João Carlos Martins retorna a um dos principais palcos do mundo nesta sexta-feira (9) para iniciar sua despedida. O concerto está com todos os seus ingressos esgotados, o testamento de uma poderosa carreira internacional. 

Em 1962, o jovem de 21 anos havia sido convidado por Eleanor Roosevelt a se apresentar naquele mesmo palco para a elite econômica, política e cultural dos EUA. Pela fresta das cortinas, via na primeira fila personalidades como Bob Kennedy

Desde então, o mundo passou por uma profunda transformação, países deixaram de existir e uma revolução tecnológica abalou as estruturas da humanidade. Mas o que não mudou foi a convicção de João Carlos Martins sobre a obrigação do intérprete de se aliar a compositores para criar emoção.

Sofrendo de distonia focal, Martins por pouco não teve de cancelar o evento que estava sendo organizado há meses. Recentemente, teve de ser operado de um câncer e foi orientado a não mais tocar. Para manter o evento, ele apenas iria reger. Mas, coerente com sua trajetória, se recusou a seguir as orientações médicas. 

Se na primeira parte do concerto ele atuará como maestro, a segunda será sobre o teclado do piano. O plano já está traçado. Nos 20 minutos de intervalo entre as duas partes do evento, ele colocará suas mãos em baldes de água quente para relaxar os músculos.

Como tudo em sua vida, o suspense parece ser sua marca. No começo da semana, Martins desembarcou em Nova York. Mas não suas malas, onde estavam as luvas biônicas que ele usa para tocar. “Sem luvas não há concerto”, afirmou. Elas acabaram chegando, para o alívio dos músicos, do maestro e dos patrocinadores. 

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Martins transformou o programa desta sexta-feira numa retrospectiva de sua vida. Considerado como um dos maiores intérpretes de Johann Sebastian Bach, o brasileiro começa com a Suíte Orquestral número 3 do alemão.

Mas transportará a revolução do compositor barroco para o Brasil, com Heitor Villa Lobos. A primeira parte será encerrada com uma “conversa” entre Villa-Lobos e Bach, em sua Bachianas numero 7. Para a segunda parte, Martins sentará ao piano para obras de Jobim, Piazzolla, John Williams e Morricone.

Nos ensaios, porém, ele insiste em não abrir mão de sua ousadia nas interpretações, mesmo num momento em que as cortinas começam a descer. 

A Bravo! acompanhou a semana de preparativos do velho maestro. Em seu primeiro encontro com a orquestra que vai acompanhá-lo, Martins explicou aos músicos americanos que de nada valia apenas tocar o que estava na partitura, sem que uma interpretação “poderosa e elegante” fosse apresentada.

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João Carlos Martins durante ensaio em Nova York (Jamil Chade/reprodução)
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A cada trecho do ensaio, interrompia, explicava o que queria e obrigava os músicos a se debruçarem nas partituras para fazer as novas marcações. Para muitos deles, aquilo tudo era inédito. Afinal, quem ousaria confrontar os parâmetros do Barroco.

Ofegante, convocava os músicos a transformar aquele evento em emoção. Não demorou para que os americanos abrissem um sorriso, cientes de que aquela ousadia era arte

JoAnn Falletta, diretora artística e maestrina da Orquestra Filarmônica de Buffalo, já havia alertado no ano passado quando, ao escrever sobre o brasileiro, constatou que Martins assumia “enormes riscos em suas interpretações musicais, recriando Bach nos pianos de hoje, com enorme emoção e liberdade, em um radical distanciamento das sacrossantas leituras de outrem”. 

“Romântico e passional, ele extraiu do instrumento e das partituras do século XVIII cores e dinâmicas que se mostraram profundamente pessoais, chocantes e reveladoras. Um contador de histórias que desconhece limites, João Carlos Martins trouxe a paixão por Bach para o século XXI, carregando a espiritualidade e o misticismo do compositor para uma nova era”. 

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Em Nova York, para sua despedida, Martins não pretende abandonar isso. Durante um dos ensaios, ao constatar a surpresa dos músicos, o brasileiro contou um de seus “causos” para justificar o protagonismo do intérprete como um ato de criação. 

Segundo ele, seu professor de piano em São Paulo, José Kliass, havia organizado um almoço para Heitor Villa-Lobos e sugeriu que Martins, na época com 16 anos, tocasse ao compositor que estava no auge de sua popularidade. 

Após o almoço na casa do professor, Villa-Lobos ouviria o jovem pianista interpretar um concerto para piano e orquestra composto pelo próprio convidado. O professor não disfarçava o sorriso de satisfação enquanto Martins percorria a obra diante do mestre que escutava atentamente. Até que uma ousadia do pianista quase provocou uma crise. 

Num dos trechos em que a partitura orientava o intérprete a tocar piano, o jovem decidiu que não era a melhor opção. E substituiu por um sonoro forte. — O que é isso? Você está tocando para o compositor — desesperou-se o professor e anfitrião. 

Villa-Lobos pediu para continuar e, ao final, tomou a palavra: 

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— Garoto, você é muito atrevido. Mas ficou mais bonito com uma sonoridade generosa. 

De atrevimento, Villa-Lobos sabia bastante. Seus Choros, dos anos 1920, Amazonas e tantas outras obras revelavam um compositor disposto a abrir novas fronteiras. Sua atitude também evidenciava que o ato de desafiar fazia parte de sua personalidade.  Durante a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, Villa-Lobos foi amplamente criticado e atacado. Mas deixou o local anunciando: “A coroa de vaias foi o que me cobriu de glória.”

No ano seguinte, ao viajar para Paris, declarou que estava indo para “ensinar e não para aprender”. Naquele início de percurso, Villa-Lobos teria papel fundador ao “permitir” que o pianista ousasse ser artista. Martins usaria a personalidade do compositor e a individualidade do intérprete como guias para sua música dali em diante. 

Em Nova York, nesta última quarta-feira, o brasileiro explicou que foi o encontro com Villa-Lobos que o incentivou a ter a mesma atitude em relação a qualquer compositor, inclusive Bach.

Visivelmente cansado ao pedir uma pausa aos músicos, Martins confessou à reportagem da Bravo!: “Quero que o público saia emocionado”.  

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E será essa ousadia que Martins levará ao palco para seu adeus.

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