“A Aforista” transforma arquitetura do pensamento em estudo musical
Em espetáculo da Cia. Stavis-Damaceno, a atriz Rosana Stavis faz do texto uma orquestra
Devidamente armados com seus pianos, dois músicos guerreiam no palco de “A Aforista”, peça da curitibana Cia. Stavis-Damaceno vencedora do último prêmio APCA de melhor espetáculo, em cartaz numa curta temporada em São Paulo. A personagem-título, no meio do duelo, não é atingida graças às frases que ocupam seu caminho. Ela queria ser pianista mas largou a profissão e se tornou uma acumuladora das frases de calendário que apanha pelos campos de sua imaginação.
A guerra musical acontece nas extremidades da cena enquanto a aforista, no centro, caminha sem sair do lugar. A imobilidade cênica é contraposta pela atividade do fluxo incessante de pensamento. A dramaturgia de Marcos Damaceno, também diretor da montagem, emerge da cabeça da protagonista, das confusões e perturbações da sua mente veloz que desafia o silêncio e desconhece filtros. Traz pensamentos contínuos e entrecortados, lógicos e irracionais, interessantes e banais. Faz o riso se aproximar do choro, a densidade da frivolidade, a loucura da lucidez.
Andar ajuda a aforista a organizar os pensamentos, a compreender o passado e se preparar para o futuro, quem sabe como uma escritora de fôlego. Ela elabora constatações pseudofilosóficas sobre a vida dos artistas e dela própria quando era uma aspirante a pianista e convivia com a insatisfação de seus companheiros, os gênios por serem gênios, os medíocres por serem medíocres.
Seu raciocínio avança, retrocede e faz muitas curvas, serpenteando pelo espaço como a cauda do seu vestido que corre desordenadamente pelo palco e faz do figurino cenário.
“A Aforista” é o segundo espetáculo da cia. Stavis-Damaceno de uma trilogia influencia pelo trabalho do escritor austríaco Thomas Bernhard iniciada com “Árvores Abatidas ou Para Luis Melo”. Assim como a peça anterior, ela joga luz na hipocrisia e na vaidade do homem, sobretudo dos artistas, trabalhando a crítica aos valores humanos num formato de espiral, em que a narrativa é apresentada em looping.
O espetáculo faz um espelhamento de Winnie, da obra beckettiana “Dias Felizes”. Apesar de não estar enterrada da cintura para baixo, a protagonista também dispõe apenas da verborragia tragicômica dos seus pensamentos e da vivacidade dos membros superiores para aplacar exasperações.
O domínio físico e vocal de Rosana Stavis é surpreendente e, não por acaso, sua atuação lhe rendeu indicações aos prêmios Shell, APCA e APTR. A atriz encontra simplicidade na complexidade da arquitetura mental da personagem e torna instantânea a conexão com o público — conduzindo-o sem resistência aos seus labirintos internos.
Além da habilidade de encarcerar-se nos descaminhos de seu raciocínio, o talento da aforista parece ser driblar o destino trágico de seus amigos pianistas habituados a lidar com os desafios da profissão de duas maneiras: suicídio ou enlouquecimento.
A protagonista volta à cidade em que viveu durante o tempo de formação musical para o enterro de um colega. Relembra a competição vivida entre ele, Polacovisk e John Marcos Martins, ambos músicos eternamente descontentes. O primeiro ávido a concursos, prêmios e adulações e o segundo em busca da superação de si mesmo. Sérgio Justen e Rodrigo Henrique personificam os pianistas citados. Suas personalidades competitivas são reafirmadas pela melodia revolta tocada por cada um em seu pianos de cauda. Não são os únicos que atuam musicalmente. Stavis estuda o texto como partitura. Sua atuação percorre a escala musical toda, dos tons sonoros e emocionais mais agudos aos mais graves. Ela decupa a dramaturgia palavra a palavra, respiração a respiração. Faz das frases notas. Do texto, orquestra.
Onde: Teatro VIVO (Av. Chucri Zaidan 2460)
Quando: Terças, quartas e quintas, às 20h; de 08/08 a 12/09
Quanto: De R$ 40 a R$ 100
Classificação: 14 anos