Até quando temos o direito de dançar?
Coletivo 50+ reflete sobre longevidade do bailarino na peça "Novos Velhos Corpos 50+", em cartaz no Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, em Recife
Na dança, envelhecer em cena era algo impensável há algumas décadas, pelo menos no Ocidente. O balé clássico, em sua essência, preconiza o virtuosismo, movimentos limpos e precisos, e a padronização de corpos. Assim, ao corpo envelhecido restava frequentemente os bastidores coreográficos e a sala de aula. Na dança moderna e contemporânea, mais flexíveis e abertas à mudança, a juventude ainda era a norma. No entanto, apesar de todas as convenções e da aposentadoria compulsória que tantos dançarinos tiveram que aceitar, há um elemento com uma força poderosa capaz de enfrentar as barreiras do etarismo: a vontade de dançar.
Isso sintetiza a experiência do Coletivo 50+, um grupo de dança de Porto Alegre fundado em 2019. Os integrantes são dançarinos com idades entre 50 e 70 anos, especializados em diferentes técnicas de dança e também se tornaram pesquisadores acadêmicos com o passar dos anos. Mesmo tendo como ocupação principal como professores em universidades, nenhum deles — com exceção de uma das participantes, Eva Schul (76) — , saiu de cena durante suas carreiras, algo um tanto quanto inédito, reconhecem. Eva, aliás, é tida como uma grande mestra para os demais participantes.
“A dança é uma arte que exalta a juventude, numa sociedade que também faz isso, ainda mais no Brasil”, relata Suzi Weber (59), uma das fundadoras do coletivo. Ao seu lado estão Mônica Dantas (56), Robson Duarte (62), Rossana Scorza (57) e o artista convidado da vez, Cláudio Lacerda. Eduardo Severino (61) também integra o grupo, mas não estava presente na conversa com Bravo!. Todos estão em Recife, se preparando para o espetáculo Novos Velhos Corpos 50+.
A apresentação será neste sábado (13), no Teatro Hermilo Borba Filho, durante o festival Janeiro de Grandes Espetáculos, que acontece até o dia 31 deste mês. Nela, os artistas somam dança, música, teatro e vídeo para debater a longevidade e a vulnerabilidade no palco. Acima de tudo, o espetáculo nasceu da urgência de seguir dançando.
Ao todo, são 10 artistas em cena, contando com os dançarinos e os músicos Dora Ávila, Flavio Flu, Marcelo Fornasier e Vasco Piva. A coreografia contemporânea é assinada horizontalmente por todos os bailarinos do coletivo e traz poderosos trechos de duos e trios. De início, eles usam meias e escorregam em papel para ganhar suavidade, e depois ficam descalços. No fim, todos se encontram em cena. A obra tem caráter imersivo com trilha-sonora sendo tocada ao vivo pelos músicos e também abre espaço para o público para dançar com os intérpretes-criadores.
Em 2013, Suzi, também professora de Teatro na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), articulou seus pensamentos sobre dança e velhice em uma publicação acadêmica, em artigo intitulado “Em Cena, senhoras e senhores, poesia do tempo no corpo”, com a temática de dança e envelhecimento. Nele, trouxe algumas experiências da dança somática no Brasil, um estilo que agrupa uma série de técnicas, tomando como partida a consciência corporal. “Eu e a Mônica pensamos assim: ‘o que é mais somático do que nós, que estamos em cena até hoje, dançando e pulando?’”.
O coletivo nasceu junto à peça Novos Velhos Corpos 50+. O ano era 2019. Os dançarinos estavam desanimados com o fechamento do Ministério da Cultura, e Suzi resolveu fazer um sarau de dança em sua casa. “Nós fizemos improvisação estruturada, chamamos alguns alunos da Eva Schul. Tinha cerca de 30 pessoas no apartamento, e lá apresentamos o que seriam os 20 minutos desse espetáculo.”
A partir desta experiência, Suzi e Mônica se cercaram de um grupo maior, com a ideia de realizar um ensaio fotográfico e um texto, novamente, para a revista Journal of Dance & Somatic Practices. “Trouxemos referências brasileiras sobre essa questão na dança e no envelhecimento.” O título? Eu sou/nós somos: Dança contemporânea, somática e novos corpos envelhecidos. E assim, o Coletivo 50+ foi criado.
Quando veio a pandemia, todos estavam inseguros sobre quando poderiam dançar juntos em um espaço físico novamente. Foi então que surgiu a ideia de projetar as imagens do ensaio que fizeram juntos em uma exposição, com suas fotografias e vídeos, de Alex Sernanbi, estampando as paredes do Centro Cultural da UFRGS. Era uma maneira sutil e eficaz de mostrar que aqueles corpos existem. “O manifesto também está nos nossos corpos”, diz Suzi, também uma porta-voz do grupo.
Essa instalação serviu como uma primeira apresentação do coletivo, muito bem recebida pelo público. “A ideia é que [o espetáculo] seja uma celebração, pensando na idade como um privilégio de viver. Ele foi criado em cima disso. As dores vivemos em casa, mas tudo bem estarem em cena também. Nossa potência é estar nos palcos enquanto resistência porque é difícil dançar.” E é então que o bailarino Robson complementa: “Essa também é uma celebração da amizade.” A obra foi estruturada, inicialmente, a partir das improvisações. Convidaram então Cláudia Sachs, com experiência em teatro, e Lisandro Bellotto, para assumirem o posto de direção.
Reunidos antes da apresentação que acontecerá dali a alguns dias em Recife, todos estão animados e com sorrisos calorosos. O frio na barriga, pelo visto, nunca deixou de existir, apesar da longa jornada nos palcos. Desde que o espetáculo foi concebido, o grupo percorreu alguns festivais, com apresentações esparsas pelas regiões Sul e Nordeste do país. “No contexto brasileiro, somos a primeira geração que não parou de dançar”, afirma Mônica Dantas. “A geração anterior à nossa, aos 30, 40 anos, precisou parar, porque naquela época, nas décadas de 1970 e 1980, era um tabu pessoas com essa idade ainda estarem em cena.” Segundo ela, muitos sairam dos palcos, ela continua, não tanto por razões físicas, mas por questões sócio-culturais.
“Não quero ser apenas a velhinha. A sensualidade sempre faz parte da minha dança. Agora que estou mais velha, devo ficar toda envergonhada por isso?”
Mônica Dantas, bailarina do Coletivo 50+
“Quando eu tinha uns 20 e poucos anos, adorava ver as pessoas mais velhas dançando. Tem toda uma potência do movimento e a pessoa não precisa mais levantar a perna até a cabeça, tudo parte da organização do corpo em movimento num corpo que é considerado plasticamente menos bonito. Tem muita beleza nisso, apesar de a sociedade não dar valor. Se formos pensar no caso do Kazuo Ohno, por exemplo, ele dançou até os 100 anos. E quanto mais velho, mais potente era a dança dele”, conta Mônica. Ainda no quesito Oriente x Ocidente, é importante mencionar que o japonês Kazuo Ohno (célebre bailarino e coreógrafo falecido em 2010) foi um dos fundadores do Butoh, um estilo de dança contemporânea que emergiu no Japão pós-guerra. “Não quero ser apenas a velhinha. A sensualidade sempre faz parte da minha dança. Agora que estou mais velha, devo ficar toda envergonhada por isso?”, questiona a dançarina.
“Antes, nós parávamos de dançar porque não nos encaixávamos mais nesse modelo, mas isso começou a mudar no final da década de 1990”, diz Robson. Como tantos outros profissionais que dedicaram toda uma vida às artes, a ideia de desistir da carreira também passou pela cabeça. No caso de Robson, isso aconteceu quando seu filho nasceu, em 1999. Sem estabilidade financeira, pensou em arrumar um emprego fixo em outra área. Mas foi puxado novamente para a cena quando surgiu uma oportunidade de se juntar a um grupo, o Terpsí Teatro de Dança.
“Estava em crise. Fui assistir a um espetáculo do grupo e fiquei maravilhado com aquilo, mas estava muito consciente que era hora de parar. Só que no fim da peça, eles anunciaram uma audição para substituir um bailarino que estava de malas prontas para a França. Dois dias depois eu participei da seleção e entrei para a companhia.”
Com o acúmulo de experiências, os dançarinos têm agora a oportunidade de refletir sobre o início de suas carreiras. O que teriam feito de diferente? “Teria usado mais tênis para não me machucar”, brinca Suzi.
Nesta fase, em que retornam a dançar em coletivo, reconhecem que há, sim, um fator limitante, mas não está em seus corpos. “A questão da produção e até da divulgação estão muito profissionalizadas atualmente. Nós damos conta da questão artística e organizacional, mas a produção ainda é um problema para nós, é o nosso ponto fraco neste momento. Produtores de plantão, estamos disponíveis.”
Novos Velhos Corpos 50+ | Festival Janeiro de Grandes Espetáculos
Teatro: Teatro Hermilo Borba Filho
Quando: 13 de janeiro | sábado | 20h
Onde: Cais do Apolo, 142 – Recife, PE
Ingressos: R$ 60 (Inteira) R$ 30 (Meia)