Gerald Thomas, de plumas, perdido no oceano
Em G.A.L.A., texto de 2021, autor cria metáfora sobre rompimento artístico e conceitual com o dramaturgo Samuel Beckett
Gerald Thomas anda cansado, com os dias cheios. Veio recentemente de Nova York, onde reside, para São Paulo, com o propósito de ensaiar o espetáculo G.A.L.A., um solo de sua autoria, conduzido com destreza pela atriz Fabiana Gugli. Em 2021, a peça teve sua estreia online, e, em 2022, foi realizada sua primeira apresentação presencial durante o Festival de Curitiba. Agora, finalmente, ela entra em cartaz no Sesc Belenzinho, na zona leste de São Paulo.
É uma quarta-feira de ensaio, véspera da estreia. O dia mais quente do ano, em pleno inverno, diga-se de passagem. No teatro-sala do Sesc, uma imensa lona azul imita uma paisagem no meio do oceano. Ali, encontra-se uma canoa partida ao meio, e dentro dela uma mulher trajando um vestido de plumas com rendas que lembram teias de aranha, uma echarpe de penas e penachos coloridos na cabeça. Este figurino é inspirado nos trabalhos do artista Hélio Oiticica, um antigo mestre de Gerald.
Na trama, já é pós-pandemia, mas a moça parece optar por permanecer isolada. Ela reclama de um mundo do qual já não faz mais parte. Na embarcação, ela retira um daqueles telefones antigos de disco, arremessa pratos quebrados ao mar e brinca com um espelho, como alguém que precisa redescobrir a própria imagem.
Durante boa parte dos 40 minutos de monólogo, ela conversa com um tal de Sancho (seria o personagem de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes?) pelo telefone. Tudo indica ser um velho amante de um romance que não deu certo. Nas conversas que não vão bem, a mulher não se importa em sair do barco e caminhar pelas águas e até mesmo sambar entre as ondas. Flutuando pelo oceano falso, há um crânio de um esqueleto humano, que imediatamente remete a Hamlet, navegando dos primórdios teatrais. Tudo naquele cenário, naquela dinâmica, é criado para não fazer sentido, ou ao menos subvertê-lo.
“Estou em ruínas e você me vem com essa notícia?” são as primeiras palavras da personagem ao atender o telefone em alto-mar. Fora de cena, Gerald está sentado numa cadeira no limite da plateia e do palco. Ele usa regata e calça pretas; seu uniforme característico. Os cabelos cacheados estão soltos nos ombros. Realmente, de perto, ele se parece com um astro do rock, como o dramaturgo Mário Bortolotto chegou a mencionar em entrevista publicada na última edição impressa da revista Bravo!, em 2013.
Assim como um astro do rock, não seria surpresa se ele fizesse algo completamente inesperado, como tentar colocar a mão debaixo da saia de uma modelo ou pôr o pênis para fora no lançamento do próprio livro, disse Mário. E fazer disso tudo uma grande piada. Mas os tempos são outros: dessas “brincadeiras” ninguém mais acha graça (ou não deveria). Naquela visita ao Sesc, ele é apenas um diretor tentando afinar os microfones de uma atriz.
Na noite de ensaio, após algumas marcações e ajustes finos, uma pausa. Gerald está, finalmente, pronto para conversar. Ou quase isso. É por meio do ensaio que vejo a peça pela primeira vez. A sugestão foi de que a entrevista acontecesse no intervalo do passadão técnico. Muito já foi dito sobre o monólogo, não há dúvidas, mas sobre o quê exatamente ele trata? De onde veio o conceito?
Ops, pergunta errada.
“Pelo amor de Deus, esse espetáculo tem dois anos. Eu não aguento mais falar sobre isso. Imagina, um bebê tem dois anos, como foi quando você trepou com a pessoa e fez lá? Qual é a cor do esperma? Não sei. Sério”, desabafa o astro do rock teatral.
Fabiana está ao seu lado. Com cuidado, ela retoma a cronologia da peça. “Foi num momento em que os teatros não reabriam e Gerald teve a ideia de fazer um projeto que incluía três peças curtas de [Samuel] Beckett. E foi ali o ponto de partida. No meio da coisa, Gerald perguntou: ‘Por que estou fazendo Beckett? Quero fazer algo meu’.” Ao lado, Gerald confirma: “Estou rompendo com Beckett”.
E o que exatamente mudou do on-line para a versão presencial?
Aí a conversa descamba de vez. “Eu já falei isso duas vezes hoje de manhã com outro jornalista, então é uma coisa… estou ficando doido.”
Impaciente, e mais ao fim da breve entrevista que não ultrapassa as duas perguntas, ele questiona: “Você pelo menos sabe o meu sobrenome? Volte mais preparado”, sugeriu.
Assistir ao espetáculo G.A.L.A. sem conhecimento prévio pode empurrar o espectador ao mar sem um bote ou salva-vidas. As frases são como um improviso (é um desafio conectá-las a um contexto maior). Isso ocorre, pois se trata de um texto autobiográfico. O nome vem Gala Dalí, esposa do artista surrealista Salvador Dalí, mas a história não é sobre ela. O monólogo poderia ser somente sobre um diálogo interno de alguém que convive com suas aflições e precisa romper com isso. De repente, seus delírios são atravessados por trovoadas. E, então, todo o cenário é pintado de vermelho. Muitas vezes, mais do que as palavras da peça, é o apelo estético que toca e que orienta as nossas emoções. Com G.A.L.A., Gerald coloca a missão de se separar de algo. E esse algo é ninguém menos do que Samuel Beckett, falecido em 1989.
A relação de Gerald Thomas com Beckett começou na década de 1980, com uma extensa troca de correspondências. Após quase dois anos de cartas, eles trabalharam juntos em Paris. Gerald adaptou os textos All Strange Away e That Time, segundo conta em seu site. Naquela época, o autor e diretor de 69 anos, estava nos seus 30 quando se aproximou do dramaturgo irlandês. E, de certo modo, Beckett nutriu o desejo de Gerald de fazer teatro e se tornou uma grande referência, como uma voz em sua cabeça que palpita mesmo quando não foi convidada. Deve ter sido difícil gerenciar essa relação. Outros relacionamentos cênicos surgiram mais tarde: Peter Brook e Heiner Müller, a quem Gerald já chamou de ‘perda de tempo’.
A história do teatro ocidental é marcada por grandes ídolos, com metodologias que se transformaram em oficinas, teses, livros e temas de aulas universitárias. Até hoje se fala sobre eles: Jerzy Grotowski, Antonin Artaud, Pina Bausch, Eugenio Barba, entre outros. No Brasil, não foi diferente, com Antunes Filho, Eugênio Kusnet, Zé Celso e, em certa medida, Gerald Thomas, que por muito tempo esteve ausente do país. Quase sempre homens.
Mas não podemos esquecer que uma das preceptoras de Gerald, o homem de teatro, foi uma mulher: Ellen Stewart, fundadora do La MaMa Experimental Theatre Club, apresentada ao autor por outra mulher, a grande Ruth Escobar. “Ellen Stewart é a alma, a ‘dama’ do teatro americano, título que pode vir como um choque para quem a vê, às 7h, todos os dias, varrendo as escadas e a calçada do seu teatro, mudando uma lâmpada ou retocando a vasta parede coberta com recortes de críticas de todos os jornais mais conceituados do mundo”, definiu ele ao jornal Folha de S.Paulo, em 1998. Longe de ser uma surpresa, portanto, que seja mais uma mulher a encenar esse ápice de rompimento (de Gerard e Beckett) em G.A.L.A.. Fabiana Gugli, vale lembrar, acompanha o diretor desde o espetáculo Ventriloquist, de 2000.
Não é de hoje que Gerald publica manifestos sobre sua relação com o teatro, seja em cena ou fora dela. Em 2009, ele fez uma dura declaração em seu blog: “Minha vida nos palcos acabou. Acabou porque eu determinei que os tempos de hoje não refletem o teatro e vice-versa.” Naquele momento, ele identificou que se processava uma “decadência criativa”, o teatro, então, estava em declínio. “(…) veremos que tudo é uma mera repetição medíocre e menor de algo que já teve um gosto bom e novo”, ele continua.
Naquela época, o mundo conhecia as primeiras versões dos smartphones e das conexões móveis. Aos poucos, cenas como encontros com amigos sendo interrompidos por longos silêncios e espiadas no celular foram ficando cada vez mais frequentes. Quase 15 anos depois, é a realidade virtual que prevalece. Algo ainda mais assustador. No entanto, Gerald parece ter retrocedido em sua decisão de romper com o teatro, pois continuou criando peças nos anos seguintes.
Apesar das críticas às mudanças e da nostalgia presente no espetáculo, Gerard crê que os tempos atuais são melhores. Não há Holocausto, não há guerras do tamanho das mundiais. Já repetiu essa afirmação em entrevistas e sintetizou ela de maneira escancarada em G.A.L.A. “Está pior do que as fogueiras da inquisição? Está pior do que o Terceiro Reich? Está pior do que crash da Bolsa, do que a fila da fome e da fila do pão?”, questiona a personagem num rompante de fúria.
Sem sombra de dúvida, os tempos são diferentes. Isso também se aplica ao teatro. Talvez a criação esteja menos centralizada ou definida por um estilo específico. Criar ídolos pode ser perigoso. Durante muito tempo, nos esforçamos demais para encontrar genialidade onde, provavelmente, não havia nenhuma. E nos desesperamos na busca por uma revolução artística que nunca chegará. Por trás da incessante procura pelo excepcional, talvez esteja a liberdade, aquela que tanto se invoca através do teatro.
Tampouco é o mesmo momento para o jornalismo, que, assim como o teatro, está constantemente à beira de sua derrocada. E o que dizer da crítica teatral? Aliás, qual é o papel da crítica nos dias de hoje? Atualmente, todos nós podemos publicar nossas reflexões sobre eventos, peças teatrais, filmes que nos emocionam. Que bom! No entanto, a crítica em sua essência parece ser como um texto que, em seu interlúdio, traz um “mas veja bem”, como uma locução que tenta reconciliar visões precipitadas ou opiniões definitivas. Se a crítica é capaz de levar uma ou duas pessoas ao teatro, ela tem seu lugar.
Talvez os comentários em posts do Instagram ou do finado Twitter (atual X) mereçam considerações conciliadoras. Mesmo assim, a crítica também recorreu a palavras violentas ao descrever peças de teatro. A relação de Gerald com Barbara Heliodora é um grande exemplo disso. Gerald desejou publicamente a morte de Barbara, e essa, por sua vez, declarou que era inútil falar sobre o trabalho do autor. Mas a disputa não foi apenas entre os dois. Zé Celso, em uma entrevista recente para a Bravo!, bateu na madeira ao mencionar o nome da famosa crítica especializada em Shakespeare. Fernanda Torres sofreu um golpe ainda mais doloroso, como ela relata em um ensaio na revista Piauí. Explico: A atriz leu nas páginas amarelas da revista Veja, em um texto daquela que costumava chamar de tia Barbara, que seu talento (de Torres) “jamais chegaria aos pés de minha mãe” (Fernanda Montenegro). Fernanda ligou para Barbara e ouviu da tia que, realmente, ela havia sido muito dura nas palavras. Será que foi um impulso daquela temível persona?
Todo rompimento implica em uma redescoberta, ou uma nova definição. Para Gerald, para Fernanda, para tantos. É perigoso ser o mesmo por muito tempo, escutei uma vez e acreditei nisso. E para se perceber como um sujeito independente, a reclusão, às vezes, é necessária. Mas é importante retornar desse mar de isolamento. Quem sabe, esse não seja um momento de um encontro novo e honesto consigo mesmo, Gerald? Aqueles que se perdem na própria persona são interessantes, sim, mas apenas na ficção.
Sesc Belenzinho
Rua Padre Adelino, 1000 – Belém, São Paulo
Sex. e sáb., às 21h30; dom. às 18h30
De 15 de setembro a 8 de outubro
Ingressos: R$ 40