O intercâmbio de cenas do Festival do Teatro Brasileiro
Em sua 22ª edição, a mostra de artes cênicas levou ao Rio de Janeiro as produções do Distrito Federal
Se há alguém que conhece profundamente a realidade da cena teatral brasileira, esse é o produtor cultural Sergio Bacelar. Fundador do Festival do Teatro Brasileiro (FTB), ele dedicou os últimos 25 anos a promover intercâmbios entre grupos e artistas das artes cênicas de diferentes estados. Neste ano, em sua 22ª edição, a mostra ocupa os teatros Poeira e Poeirinha (das atrizes Marieta Severo e Andréa Beltrão), no Rio de Janeiro, até o fim do mês. Com um formato itinerante, o objetivo do Festival é estabelecer um diálogo entre dois estados; enquanto um assume o papel de anfitrião, o outro atua como criador. A proposta do evento para esta temporada é apresentar ao público carioca espetáculos e artistas do Distrito Federal.
A programação, que se estende até 26 de maio, inclui 12 peças de teatro, dança e circo. Esta edição conta com a participação do coletivo Instrumento de Ver, da Cia Lumiato Teatro de Formas Animadas, do BRs.a. Coletivo de Artistas, do Coletivo Antônia, da cia brasiliense S.A.I, da Companhia de Dança Corpus Entre Mundos, do Coquetel Molotov e de Bebelume. Um dos charmes da programação são os diversos espetáculos para bebês, apresentados por diferentes grupos.
O conceito do festival nasceu de uma prática que Sergio já cultuava quando mais jovem. Sem experiência e formação anterior em Artes Cênicas, o gestor administrava um restaurante em Brasília, o Caderno 2. O espaço era conhecido por artistas por abrigar apresentações musicais e teatrais. “Ali eu comecei a produzir alguns pequenos festivais, festivais de jazz, de esquetes de teatro. Naquele momento ali, em Brasília, a gente tinha ‘A culpa é da Mãe’, que depois virou ‘Os melhores do mundo’, um grupo de comédia que teve bastante sucesso. Estava no lugar certo, na hora certa, quando passamos a ter um investimento cultural mais intenso no Brasil”, relembra em entrevista à Bravo!.
Na época, Sérgio estudava Direito. Embora tenha concluído o curso, não chegou a exercer a profissão. Se tornou um daqueles corajosos que escolheu o duro caminho da cultura. Foi quando Sergio foi apresentado ao movimento teatral produzido na Bahia por meio de seu companheiro, e hoje diretor artístico do FTB, Guilherme Filho. Desse encanto, resolveu iniciar um movimento para deslocar as produções baianas para outros territórios em Brasília. “Na onda dos novos editais, eu apresentei essa primeira proposta para a Caixa [Cultural] no final dos anos 1990, que se chamava Mostra de Teatro da Bahia. Um projeto ainda pequeno, com três espetáculos só, mas que deu muito certo”.
Tanto o público quanto os patrocinadores pareceram aprovar a iniciativa, o que estimulou o gestor a investir numa segunda rodada. Dentre os nomes que participaram daquele evento, ele se lembra de alguns talentos promissores: Wagner Moura, Rita Assemany e Nilda Spencer. No ano seguinte, ele percebeu que era momento de tentar algo novo e continuar explorando novas fronteiras. “Passei a chamar de Festival de Teatro Brasileiro para que eu pudesse levar outras cenas.” Até 2007, o festival ainda acontecia no Distrito Federal. Depois disso, passou a viajar por outros estados com a mostra de artes cênicas, sempre com o modelo de colocar duas paisagens cênicas frente a frente. “Começamos essa grande viagem pelo país, que já chegou a 17 estados, e em cada edição, sempre temos como objetivo chegar também além das capitais, mas ir a outros municípios.”
A curadoria, para Sergio, é um exercício de imaginação. Os realizadores frequentam os festivais, conhecem as diversas cenas do país e, então, definem quais diálogos podem ser feitos a partir dali. Isso tudo sem deixar de lado aquilo pode apetecer o interesse dos eventuais patrocinadores. “Vou entendendo o que os estados oferecem de produção teatral e aí reflito com quem esses estados podem dialogar.”
Mediação em Artes Cênicas
Conforme o festival evoluia, outras aspirações ganharam lugar. Uma das contrapartidas da mostra é proporcionar diálogo entre os trabalhos artísticos e um público jovem. Para isso, deram início a parcerias com escolas públicas dos municípios que sediam o festival. “Nós levamos estudantes da educação básica para acompanhar as peças. Então, nós vamos até as escolas e convidamos esses estudantes para assistirem ao espetáculo. Mas para não ser simplesmente uma ida a uma peça, nós potencializamos essa vivência deles por meio de um processo pedagógico, a mediação”, explica Glauber Coradesqui, coordenador pedagógico do FTB.
Nos primeiros anos de experiência, ao levarem os estudantes para o teatro, perceberam que uma ação era urgente, já que se fazia necessário criar uma familiaridade entre aqueles novos espectadores e o espaço teatral. “Das primeiras apresentações em que o Festival levou a escola, o comportamento dos estudantes comprometeu muito o andamento do espetáculo, a ponto de a atriz ter que parar duas ou três vezes para dizer que não ia conseguir continuar se eles não fizessem silêncio. Aquilo ali, para o Sérgio, foi inaceitável e ele chegou à conclusão de que não poderia simplesmente levar as escolas sem que houvesse algum tipo de preparação para os alunos entenderem o que estava acontecendo, para onde estavam indo e sobre o que se tratava o trabalho.”
Ele explica que a mediação pode ser feita a partir de conversas, ou mesmo uma oficina de jogos teatrais. “São atividades cênicas que envolvem tanto o pensamento quanto a prática de algumas atividades que a gente faz no teatro: aquecimentos, exercícios de improvisação, exercícios de criação cênica, exercícios, contextos teatrais; são atividades que a gente desenvolve em oficinas de iniciação teatral, porém aplicadas ao contexto daquele espetáculo específico.”
Perda de fôlego na cultura
Além das delícias que a viagem teatral tem oferecido ao produtor, há também um diagnóstico marcado pela perda de vigor nos recursos direcionados à cultura na última década. “Até 2015, nós vivíamos no Brasil um crescimento potente cultural; uma afirmação dos trabalhos de grupos, das companhias. Havia uma vibração naquele momento. Percebíamos um amadurecimento da nossa produção, a internacionalização maior dos nossos trabalhos. Depois do impeachment de Dilma, foi ladeira abaixo, começou a coisa da censura. São diversas as histórias de grupos que pararam de existir, que não tiveram continuidade, que tiveram seus trabalhos de pesquisas interrompidos”, conta Sergio.
Ele avalia que, embora o setor esteja aquecendo novamente, especialmente nas grandes capitais, ainda é cedo para ser otimista. “Acho que agora estamos começando a ter um novo fôlego para um novo período de potencializar as criações, mas ainda é muito inicial”, conclui.
O melhor do Festival do Teatro Brasileiro segundo a Bravo!
Acompanhamos de perto, durante uma semana, parte da programação do FTB, no Rio de Janeiro. Os espetáculos que mais gostamos no FTB foram:
23 fragmentos desses últimos dias
Um dos destaques da primeira semana, o espetáculo de abertura do festival, “23 fragmentos desses últimos dias”, do Coletivo Instrumento de Ver, chegou com os dois pés na porta com uma pergunta nada simples: o que esperar de um mundo que está cada vez mais aos pedaços? Mas, além disso, é possível ter esperança? Os seis artistas em cena respondem com danças e atos circenses, que envolvem malabarismo, contorcionismo e equilibrismo. O projeto contou com a colaboração da diretora e circógrafa francesa Maroussia Diaz Verbèk, a convite do coletivo.
Senhora P
Se há um assunto que vem tomando conta das narrativas (tanto audiovisuais quanto cênicas) é a dimensão do problema da violência sexual. Em “Senhora P”, a atriz, diretora e professora de teatro Adriana Lodi, do coletivo Coquetel Molotov, explora outra camada desses abusos, ao tratar da violência conjugal. Na peça, ela encarna uma professora de Ensino Médio, que se vê no desafio de aprofundar questões sociais contemporâneas com seus alunos, enquanto luta para se emancipar de um casamento comprometido pela violência de gênero.
Memória Matriz
Uma das linguagens cênicas que mais se vale da técnica e da tradição é o Teatro de Sombras. Thiago Bresani e Soledad Garcia, da companhia de teatro Lumiato, se especializaram nesse método. E a ele, juntaram outro procedimento poético: o Teatro de Bonecos. Em “Memória Matriz”, são as histórias contadas a partir das sombras que ganham vez. Nele, Soledad e a atriz convidada Katiane Negrão tecem uma encenação que trata da constituição do feminino a partir do uso de dispositivos que, de certo modo, por décadas expressaram os papéis de gênero, como a máquina de costura, as revistas femininas e o vestido de casamento. Soledad parte das próprias memórias das matriarcas de sua família, de suas fotografias antigas para remontar uma história que o público poderá achar bastante próxima das suas próprias.
Bubuia
Um dos formatos teatrais contemporâneos mais sofisticados é o teatro para bebês. Um estilo que vem ganhando destaque nos últimos três anos e que, como o próprio nome diz, tem como público-alvo os pequenos espectadores da primeira infância. Em “Bubuia”, o Coletivo Antônia, se inspirou na obra literária “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa. Ali, não é o texto ou a sequência de acontecimentos que ganham protagonismo, mas sim as sensações; os sons, as cores; os volumes. Ou seja, a experiência em si. Sentados no chão em torno de uma lona que representa o rio, os pequenos ficam fascinados com o que assistem. E, claro, querem interagir de todas as maneiras que são possíveis, inclusive através do toque.
Até 26 de maio
Local: Teatros Poeira e Poeirinha
Endereço: Rua São João Batista, 104 – Botafogo (Rio de Janeiro)
Ingressos: de R$ 15,00 a R$ 40,00