“The Boys in the Band” e o movimento gay
Com adaptação de Ricardo Grasson, peça teatral de Mart Crowley segue em temporada em SP até janeiro de 2024
Seria uma noite divertida entre amigos como outra qualquer. No entanto, alguns fatores contribuíram para diferenciá-la. O primeiro é que todos ali, exceto um, são gays. Em seguida, eles vivem no fim da década de 1960, nos EUA, período em que a homossexualidade era amplamente reprimida, seja por força policial ou pela jurisdição vigente. Ou seja, para muitos, permanecer no armário era a decisão mais segura e a liberdade era permitida apenas na clandestinidade. Por último, havia muita bebida envolvida, um gatilho para que as emoções estivessem à flor da pele. É nesse ambiente que a peça The Boys in the Band – Os Garotos da Banda, escrita por Mart Crowley, se instaura.
Em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, a montagem de Ricardo Grasson tenta reparar seu passado nos palcos brasileiros. Isso porque, em 1970, em plena ditadura, o casal Eva Wilma e John Herbert trouxe o texto para o Teatro Cacilda Becker, mas não demorou até que a censura tentasse intervir nos planos do espetáculo em cartaz. Muito parece ter mudado do período em que foi escrita até hoje, felizmente. Nos EUA, contudo, a peça foi uma importante ferramenta para enfrentar a repressão.
Desta vez, a obra segue seu segundo mês de temporada, com a casa cheia. Tudo se passa no apartamento de Michael (Mateus Ribeiro) em Nova York, que decide dar uma festa de aniversário ao amigo Harold (Bruno Narchi). Ao lado de Donald (Leonardo Miggiorin), os dois recebem os amigos Bernard, Larry, Hank e Emory. Mas, antes da festa começar, Michael recebe uma ligação de um antigo colega de faculdade, Alan, que parece estar muito mal e pede para fazer uma visita para conversar. Fazia tempo que os dois não se viam. Alan, no entanto, é hétero, casado, e não sabe que Michael é gay. Este último, sem medir as consequências de sua ação, convida o rapaz para a festa. É, então, que a tensão começa.
De início, o anfitrião resolve não falar nada a respeito de si ou sobre os amigos. Aos poucos, o álcool toma a vez e todos saem do armário na frente de Alan, que fica atônito com a cena e causa uma confusão entre os convidados. Mesmo assim, ele permanece no ambiente até o fim. Esse montante é o suficiente para um dramalhão, mas é Michael que transforma o clima daquela festa no de um enterro, ao propor aos rapazes um desafio: que cada um dos integrantes ligue para um amor antigo e se declare. Muitos dos amores são amigos e colegas héteros que se casaram e seguiram com suas vidas. Enquanto isso, aos nossos personagens restou a rejeição. Se antes o local era tomado por farra e discussões, em seguida é a tensão e melancolia que prevalecem.
“O texto fala muito das diferenças. Por isso que digo que ele é atemporal e poderia ser uma história hétero também porque fala sobre as relações, a amizade, o amor, o ódio, a indiferença, sobre os nossos demônios internos. No caso do personagem Michael, a chave dele é a bebida; ele bebe e vira outra pessoa”, afirma o diretor do espetáculo, Ricardo Grasson, em entrevista à Bravo!.
Assim como no Brasil, décadas atrás, a peça causou comoção nos EUA, tanto pela homofobia quanto pelo fato de a dramaturgia dar protagonismo e explorar o afeto de homens gays na cena mainstream. O preconceito, por razões óbvias, é apenas um dos elementos que atravessa a realidade dos personagens, mas há também o desejo de aceitação e de vivenciarem relações recíprocas. Atualmente, a peça ganha mais uma característica, ao reconstituir uma época que antecede o HIV, que, em breve, se tornaria um dos temas centrais da comunidade queer. A busca pela libertação, portanto, tem outra forma. Ali, é a discriminação que precisa ser superada. Além disso, ela antecipa a revolta de Stonewall, em junho de 1969, destacou Grasson.
“A peça, nos EUA, foi montada em 1969, no ano que estourou Stonewall. Tanto que quando a revolta aconteceu, muitos que estavam no bar foram se refugiar no teatro, onde estava acontecendo ‘The Boys in the Band’. A peça faz parte do movimento. Quando ela foi escrita, era crime ser gay. Era um período em que um grupo de homens gays reunidos, a polícia poderia baixar e bater em todo mundo e levar preso”, conta Grasson.
O convite para dirigir o espetáculo veio da Zuza Produtora. A primeira versão tratava-se de uma peça atualizada para o Brasil de hoje, mas para o encenador algo parecia fora de lugar. Quando levou a questão para a sala de ensaio, a mesma sensação se repetiu entre o elenco. Pediram, então, para encenar o texto em sua versão original. “Para atualizar esse texto, precisaríamos passar por 53 anos de história. Passamos pela crise da Aids nos anos 90. Como atualizamos um texto desse sem falar do HIV/Aids? Seria um texto completamente diferente. Quando lemos o texto, foi unânime: precisávamos transportar as pessoas para 1968.”
Em 2020, a peça foi adaptada para as telas, numa produção da Netflix, com Jim Parsons e Matthew Bomer no elenco.
A peça, nos EUA, foi montada em 1969, no ano que estourou Stonewall. Tanto que quando a revolta aconteceu, muitos que estavam no bar foram se refugiar no teatro, onde estava acontecendo ‘The Boys in the Band’. A peça faz parte do movimento. Quando a peça foi escrita, era crime ser gay. Era um período em que um grupo de homens gays reunidos, a polícia poderia baixar e bater em todo mundo e levar preso”
Ricardo Grasson, diretor.
Um dos maiores méritos na montagem atual está na interpretação ágil e ácida de Michael pelo ator Mateus Ribeiro, conhecido por fazer parte de grandes musicais, como “Peter Pan” e “Sweeney Todd”. “Quando você lê o texto pela primeira vez, é uma conversa entre nove pessoas. A questão da aceitação está muito presente ali, os personagens se alfinetam muito no espetáculo. São maus entre eles e possuem muitos preconceitos incubados. O Michael não se aceita de forma alguma, na sua aparência, no seu jeito, no seu interior.”
De todos ali, Michael é o que mais personifica as contradições humanas. Embora se veja vítima de uma sociedade homofóbica, isso não o imuniza de reproduzir preconceitos, como quando ele ofende Bernard (Tiago Barbosa), o único negro na sala. “As minorias deveriam olhar para onde mora o preconceito. São pessoas que sofrem tanta discriminação a vida inteira. O meio LGBTQIA+, querendo ou não, também propaga isso.”
O ator Leonardo Miggiorin acompanhou o processo da peça desde que ela era apenas uma vontade. Inicialmente, ele iria participar nos bastidores, mas veio o convite para que ele atuasse. “É uma comédia triste. Ela é uma grande festa, mas no fim ela revela muitas questões de relacionamentos. Queria estar no projeto pela pauta, pelas questões envolvidas e pelo grupo que foi sendo formado. É o meu terceiro trabalho com o Ricardo Grasson. Topei fazer qualquer personagem, pois quando entrei não tínhamos isso definido.”
Para Miggiorin, participar do projeto vem ao encontro de ser mais atuante publicamente em defesa dos direitos de pessoas LGBTQIA+. “Neste momento da minha vida, aos 41 anos, decidi parar de ser tão neutro nessa questão, embora na minha vida pessoal eu tenha sido sempre presente nas questões de igualdade. Mas havia uma separação entre a vida pública e a vida pessoal. Comecei a integrar mais as minhas questões pessoais. Alguns aspectos da minha vida eu reprimia, deixava no âmbito da intimidade. Foi uma escolha integrar isso na minha vida pública também.”
Teatro Procópio Ferreira
Rua Augusta, 2.823 – Cerqueira César – São Paulo
Ingressos: R$ 60 a R$ 120 | |Até 12 de janeiro – Terças e quartas, às 21h (em dez), e Quartas, quintas e sextas, às 20h30 (em jan)