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Arte de protesto de Gran Fury inaugura Histórias da Diversidade no Masp

Exposição “Gran Fury: arte não é o bastante” mostra trabalhos históricos do coletivo novaiorquino que surgiu no começo da epidemia de Aids

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 23 fev 2024, 10h47 - Publicado em 15 fev 2024, 09h00

Na próxima sexta-feira (23), o Masp inaugura a exposição “Gran Fury: arte não é o bastante”, dedicada ao coletivo ativista estadunidense homônimo que existiu entre as décadas de 1980 e 1990. A mostra é a primeira do programa Histórias da diversidade LGBTQIA+, no qual o Museu discute – seja por exposições, oficinas ou debates – as narrativas e lutas das pessoas LGBTQIA+.

O título da exposição vem da frase célebre do coletivo “With 42,000 Dead, Art Is Not Enough” (“Com 42 mil mortos, arte não é o bastante”), que estampou a capa do calendário do The Kitchen, uma instituição de arte independente. A mostra reúne 77 obras do Gran Fury, incluindo fotocópias e impressões digitais sobre papel, que simbolizaram manifestações gráficas do grupo durante a epidemia da Aids nos EUA. Na época, grande parte de seus trabalhos era exposta em ônibus, paredes de espaços públicos e até em comerciais de televisão. “Essa é uma exposição de caráter histórico, de documentação. O trabalho do Gran Fury tem uma importância fundamental para pensarmos as estratégias de ativismo artístico que surgiram posteriormente”, explica o curador André Mesquita, em entrevista à Bravo!.

Quando o coletivo estadunidense Gran Fury iniciou suas atividades no final da década de 1980, não havia nenhuma intenção artística por trás de suas ações. Eles eram, antes de tudo, ativistas movidos por uma causa. Naquele período, a Aids fazia muitas vítimas, principalmente pessoas queer, enquanto os líderes dos Estados Unidos se recusavam a tratar a situação como um problema. “Nosso foco estava em como poderíamos apoiar a comunidade. Pessoas que conhecíamos estavam morrendo com pouco apoio ou mesmo reconhecimento. Sentíamos que nossas vidas dependiam de fazer da AIDS uma questão para a sociedade”, contam os artistas John Lindell e Loring McAlpin. 

O Gran Fury foi criado a partir de uma demanda do ACT UP (Coalizão da Aids para libertar o poder), de Nova York, que agia em defesa de políticas públicas de combate ao HIV/Aids. A negligência era tamanha que o presidente Ronald Reagan apenas mencionou publicamente a Aids no final de seu segundo mandato, em 1987, lembrando que o início da pandemia foi em 1981. “Temos três tipos de materiais expostos nesta mostra. A produção gráfica, que inclui cartazes, vídeos, outdoors e fotografias. Há também um material complementar referente ao Act Up, como panfletos que convocavam as pessoas para as manifestações de denúncia, trazendo informações que rebatiam e criticavam todo aquele contexto da crise da Aids. E também fotografias de manifestações convocadas pelo Act Up”, antecipa André.

 

 

O curador e pesquisador conta que o coletivo tem influenciado e sido tema de muitas conversas dentro do Museu. Inclusive, a proposta de que essa mostra inaugurasse o ano temático do Masp se deu, especialmente, pela capacidade do Gran Fury de borrar as fronteiras entre arte e ativismo, estimulando um estilo de fazer artístico mais politizado. “Eles foram muitos influentes e perspicazes na maneira de exibir os seus trabalhos. Eles trouxeram uma contribuição visual e estética fundamental para o campo da arte ativista. Eram mestres em se apropriar da linguagem da mídia corporativa do governo para produzir campanhas que alertassem sobre a questão da Aids. Ao mesmo tempo, eles  conscientizavam a população sobre o descaso do governo em relação ao tema.”

Durante seu período de atuação, o Gran Fury foi responsável por uma das controvérsias mais famosas da história da Bienal de Veneza. Em 1990, foram convidados a participar do evento, onde expuseram a obra “Pope Piece”. Nela, foram colocados dois outdoors lado a lado. Em uma das imagens estava Papa João Paulo II com um texto sobre a retórica anti-preservativo da igreja. Em outra, tinha um pênis ereto gigante no meio de uma frase: “O sexismo mostra sua cabeça desprotegida. Homens, usem camisinha ou caiam fora. Aids mata mulheres.” Houve uma grande discussão se a obra deveria ou não ser retirada da Bienal – o que não aconteceu. “Na época, o diretor artístico da Bienal argumentou que aquilo não se tratava de arte, mas sim de ativismo, e que a Aids não existia na Itália”, explica André.

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Além da questão sanitária, o coletivo também buscava dar visibilidade para a diversidade de raça e de orientação sexual, quebrando tabus da época. “O trabalho ‘Kissing Doesn’t Kill’ [Beijar não mata], o mais famoso do Gran Fury, que traz três casais interraciais se beijando, foi feito em 1989. O primeiro beijo lésbico que a televisão norte-americana mostrou foi em 1991 (no programa L.A. Law)”, aponta André.

Em 1995, o Gran Fury encerrou suas atividades, em um momento no qual a discussão em torno da Aids já estava fortalecida no debate público. Fizeram parte do coletivo Avram Finkelstein, Donald Moffett, John Lindell, Loring McAlpin, Mark Simpson (1950-1996), Marlene McCarty, Michael Nesline, Richard Elovich, Robert Vazquez-Pacheco e Tom Kalin. Atualmente, seus trabalhos estão expostos em comissões de arte pública de instituições renomadas como Whitney Museum e New Museum.

Bravo! entrevistou por e-mail os artistas John Lindell e Loring McAlpin, que integraram o Gran Fury. Confira abaixo a íntegra:

Como exatamente nasceu o coletivo Gran Fury e qual era seu objetivo na época?
O coletivo nasceu enquanto a instalação Let the Record Show na vitrine do The New Museum, na Broadway, estava sendo desmontada. Naquela época, alguns membros do grupo decidiram continuar se encontrando para criar gráficos para o ACT UP serem colados pela cidade. Tínhamos pouca consciência de que seríamos abraçados pelo mundo da arte; nosso foco estava em como poderíamos apoiar a comunidade ativista.

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Vocês imaginavam que o coletivo ganharia essa dimensão?
Queríamos ajudar a amplificar a mensagem e o ativismo do ACT UP para um público mais amplo. Vimos a oportunidade de criar gráficos que poderiam ser postados no centro de Manhattan e serem usados como adereços para tornar os protestos mais legíveis para a mídia. Nenhum de nós sabia que o ACT UP cresceria para ter uma presença nacional e internacional, ou que teríamos oportunidades de fazer trabalhos com apoio do mundo da arte. Na época, pessoas que conhecíamos estavam morrendo com pouco apoio ou mesmo reconhecimento. Sentíamos que nossas vidas e nossa comunidade dependiam de fazer da AIDS uma questão para a sociedade.

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Gran Fury
Art is not Enough [Arte não é o bastante], 1988
Impressão offset sobre papel [Offset print on paper], 54,5 × 34,5 cm
Cartaz para uma série de eventos no The Kitchen, em 1988, Nova York, Estados Unidos (MASP/reprodução)

Olhando para trás, quais você diria que foram as principais conquistas em termos de conscientização sobre o HIV/AIDS?
O movimento e o trabalho do Gran Fury trouxeram questões de acesso médico, custos de medicamentos e preconceito contra as PWA’s (Pessoas Vivendo com AIDS) para o domínio público em um momento em que o governo quase nada dizia sobre a epidemia. Em 1987, a imprensa veiculava histórias que demonizavam pessoas com AIDS e exageravam a ameaça ao público. Concentramos nossa atenção em remover o estigma contra pessoas HIV positivas, que era amplamente não contestado, bem como na necessidade de aumentar o financiamento para medicamentos e serviços sociais compassivos para indivíduos HIV positivos. Esses objetivos estavam muito alinhados com os do ACT UP.

Após vários anos, esses pressupostos começaram a mudar. O governo começou a fornecer fundos para o desenvolvimento de medicamentos, e a Agência Federal de Drogas e o Instituto Nacional de Saúde começaram a envolver os afetados pela AIDS e seus defensores em suas discussões políticas, e os medicamentos se tornaram mais disponíveis. Esses ativistas conseguiram redigir uma revisão completa do processo de aprovação para o desenvolvimento de drogas para todas as drogas, um dos exemplos mais claros de desenvolvimento de drogas centrado no paciente na história dessas agências.

As discussões que vocês tiveram foram além da questão da epidemia e também abordaram o racismo. Havia a compreensão de que era necessário ir além das discussões sobre a ordem social?
O ACT UP desde o início entendeu que a epidemia estava sendo ignorada porque afetava principalmente homens gays e “pessoas de cor” – pessoas que tinham menos poder político e representação e que historicamente tinham menos acesso a recursos considerados garantidos pelos heterossexuais brancos. Isso incluía o sexismo na medicina, identificado pelo Women Don’t Get AIDS. Então, enquanto havia um foco em “colocar drogas nos corpos”, também havia ênfase nos sistemas maiores que marginalizavam pessoas de cor, os pobres e a comunidade gay. Nosso primeiro cartaz, 1 em 61, apontou para como o racismo tornava invisível o impacto da AIDS nas comunidades de cor.

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Kissing Doesn’t Kill (ver.1) [Beijar não mata (versão 1)], 1989-1990
Impressão offset sobre papel em anúncio de ônibus
[Offset print on paper set in bus poster], 76 × 355,5 cm
Trabalho comissionado para o projeto “Art Against AIDS: On the Road”, São Francisco, Estados Unidos [Commissioned work for the project “Art Against AIDS: On the Road”, San Francisco, United States] (MASP/reprodução)

Vocês foram alvos de censura ou algum tipo de assédio, seja pelo governo ou pela população?
Ocasionalmente, encontramos assédio ao colar cartazes na cidade, mas raramente. Em algumas ocasiões, encontramos censura por parte de financiadores de alguns projetos de arte pública. O outdoor Kissing Doesn’t Kill tinha originalmente o slogan acompanhante, “A ganância corporativa, a inação do governo e a indiferença pública tornam a AIDS uma crise política.” Nos disseram que o projeto não poderia ser veiculado sem abandonar a referência à “ganância corporativa”. O grupo decidiu prosseguir sem esse slogan porque a frase ‘Beijar Não Mata’ desafiava a percepção de que a AIDS poderia ser transmitida pela saliva e, talvez mais importante, apresentava uma imagem positiva para os gays.

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Mesmo assim, em Chicago, líderes cristãos pediram para desfigurar as imagens de beijos entre pessoas do mesmo sexo. O senado estadual de Illinois até aprovou uma lei estadual proibindo imagens públicas de casais do mesmo sexo se beijando. Felizmente, foi derrotada na Câmara dos Deputados. O KDK não pôde ser veiculado na MTV por causa dos beijos entre pessoas do mesmo sexo. Na Bienal de Veneza em 1990, o diretor se opôs ao nosso trabalho pela crítica do Gran Fury à proibição da igreja de usar preservativos e educação sobre sexo seguro. Ele foi sobrepujado, e a instalação foi permitida. A faixa de Todos com AIDS inicialmente não foi permitida ser mostrada na cidade de Nova York pela instituição patrocinadora. Ingenuamente, sempre ficávamos surpresos com as tentativas de censura.

Qual foi sua reação quando começaram a entender o trabalho do Gran Fury como expressão artística? Isso os desagradou?
Nunca distinguimos nosso trabalho como sendo apenas ‘ativista’ ou ‘expressão artística’. Simplesmente nunca sentimos que havia necessidade disso e que não era produtivo defini-lo. Claro, isso aconteceu em um momento em que o ativismo no mundo não era amplamente aceito (ao contrário do que acontece atualmente). Se os outros quisessem definir como expressão artística e isso nos desse acesso a recursos para divulgar nosso trabalho, estávamos todos a favor. Mas nunca sentimos que, para nós, fosse uma distinção produtiva.

Em algum momento da trajetória do coletivo, vocês começaram a se autoidentificar como um coletivo de arte?
Éramos parte do ACT UP, então nos considerávamos principalmente como ativistas, em vez de um coletivo de arte. Com o tempo, passamos a ser identificados como um coletivo de arte devido à atenção do mundo da arte. Estávamos felizes em nos enquadrar na categoria que nos dava recursos para fazer nosso trabalho.

Existe algum momento ou ação do qual vocês se orgulham mais?
Acho que foi nossa resistência contra a tentativa de censura de nosso trabalho na Bienal de Veneza de 1990. Tivemos que protestar e chamar a atenção da imprensa para o que estava acontecendo conosco. E ignorar a ameaça de prisão que o diretor da bienal continuava nos lançando. Nunca tivemos que defender e lutar por nosso trabalho pessoalmente antes. Típico em situações de censura como essa, recebemos mais atenção da imprensa do que se eles não tivessem tentado censurar nosso trabalho.

Você acha que superamos o estigma e o preconceito que existiam naquela época contra as pessoas vivendo com HIV?
É menos, mas não desapareceu totalmente e mudou. Acho que as pessoas não têm mais medo de alguém que é HIV positivo como nos anos 80, mas o estigma agora seria a culpa por se tornar positivo.

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Gran Fury
The Government Has Blood On Its Hands [O governo tem sangue nas mãos]
ACT UP, Manifestação no Departamento de Saúde, Nova York, Estados Unidos, 1988
Impressão offset sobre papel [Offset print on paper], 80,5 × 54,5 cm (MASP/reprodução)

O que levou o grupo a interromper suas atividades?
A situação política tinha mudado para melhor, as PWA’s estavam começando a ter uma voz na resposta do governo à AIDS, e o frenesi inicial tinha diminuído. Esses eram temas fáceis de abordar em nosso estilo de trabalho publicitário com slogans curtos. Os problemas que vimos nos anos 90 eram muito complexos para abordarmos com nossos métodos usuais. Desenvolvemos uma maneira de trabalhar que seria difícil de mudar. Além disso, naquela época, muitas agências não governamentais que lidavam com a AIDS haviam se formado, muitas delas criando campanhas públicas, então estávamos, de certa forma, mais obsoletos. Embora a luta por financiamento e reconhecimento não estivesse completamente encerrada, o discurso público sobre a AIDS estava muito mais desenvolvido.

Você vê alguma conexão entre o que aconteceu nos Estados Unidos e no Brasil?
A resposta à AIDS no Brasil foi muito melhor do que nos Estados Unidos. O governo brasileiro implementou campanhas de prevenção e forneceu medicamentos para as PWA’s de forma mais agressiva do que nos Estados Unidos. Em parte, isso se deve ao fato de a epidemia de AIDS ter começado mais tarde no Brasil, então havia mais conhecimento disponível. Além disso, o Brasil conseguiu produzir seu próprio suprimento de drogas, e seu governo gastou mais dinheiro tanto em prevenção quanto em tratamento. Fora isso, o governo trabalhou mais de perto com parceiros da sociedade civil para identificar as necessidades das várias comunidades afetadas. De muitas maneiras, o Brasil forneceu um dos melhores exemplos de como responder à pandemia. O que não temos conhecimento é até que ponto os grupos LGBT são permitidos a incluir suas vozes em discussões de políticas públicas mais amplas, ou como as P.W.A.’s são tratadas na sociedade.

Como foi para vocês receberem esse convite do Masp?
O curador, André Mesquita, conheceu um de nossos membros, Tom Kalin, quando ele veio falar em uma conferência no Masp há vários anos. Foi um pouco surpreendente, pois esse trabalho foi feito há décadas, nossas vidas seguiram em frente, e como trabalhávamos parece tão antiquado na nossa era digital.

Se vocês decidissem retomar as demonstrações, que temas ou discussões procurariam abordar?
Não abordaríamos necessariamente a AIDS. A situação não é tão grave quanto nos anos 80. O ACT UP e o Gran Fury, também, mantiveram um foco rigoroso em seus esforços, lidando exclusivamente com questões relacionadas à AIDS. Evitamos questões tangenciais, então acho que a retomada do trabalho do Gran Fury não faria sentido.

Gran Fury: arte não é o bastante

23.2 – 9.6.2024
MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
Avenida Paulista, 1578 | Bela Vista | São Paulo/SP
Horários: terças grátis Bradesco, das 10h às 20h (entrada até as 19h), e quintas grátis, das 10h às 18h (entrada até as 17h); quarta, sexta, sábado e domingo com 50% de desconto, das 10h às 18h (entrada até as 17h); fechado às segundas

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