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Lygia Clark no fio tênue da vida e da arte

Exposição fundamental na Pinacoteca SP reconta a trajetória da artista, figura fundamental da arte contemporânea brasileira

Por Humberto Maruchel
Atualizado em 7 mar 2024, 15h01 - Publicado em 4 mar 2024, 09h00
Lygia-Clark
 (Acervo Pessoal/divulgação)
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Lygia Pimentel Lins poderia ter se conformado com uma vida comum. Nascida no início do século XX, da elite mineira, seu futuro parecia meticulosamente planejado para uma vida próspera, seguindo os padrões da época, que esperavam dela o papel tradicional de mãe e dona de casa. Terceira dos quatro filhos de Edmundo Pereira Lins, ministro do Supremo Tribunal, e Ruth Mendes Pimentel, ela nasceu em Belo Horizonte, mas escolheu passar a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, onde faleceu. No entanto, não demorou muito para que Lygia Pimentel se transformasse em Lygia Clark, uma das mais renomadas artistas brasileiras.

Neste começo de março, a Pinacoteca de São Paulo decidiu homenagear Lygia com uma megaexposição da envergadura do seu legado nas artes. Lygia Clark: Projeto para um planeta, em exibição até 4 de agosto, apresenta mais de 150 obras de diferentes momentos da carreira da artista plástica, abrangendo desde suas primeiras pinturas até esculturas do movimento neoconcreto, seus projetos arquitetônicos, e a reprodução de métodos interativos. A exposição ocupa sete galerias da Pinacoteca Luz e conta com a curadoria de Pollyana Quintella e Ana Maria Maia, numa tentativa de reaproximar o público do repertório de Lygia e apresentá-la para novas gerações. A última vez que houve uma exposição dedicada à artista na capital paulista foi em 2012, no Itaú Cultural.

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“Relógio do Sol” (1960), de Lygia Clark (Romulo Fialdini/divulgação)

O poder da interação sensorial 

Lygia Clark foi uma artista que revolucionou como entendemos e interagimos com a arte. Em vez de encarar as produções apenas como objetos de contemplação passiva ou de análise racional, ela acreditava que a arte deveria proporcionar uma experiência transformadora e afetiva. Foi assim que ela se tornou pioneira na criação de obras interativas e sensoriais, convidando o espectador a participar ativamente, manipulando e explorando os objetos artísticos, atravessando o modernismo para a arte contemporânea. Dessa forma, ela desafiou os papéis rígidos de artista e público.

“Quando pensamos na história da arte brasileira, sobretudo na transição da arte moderna para arte contemporânea, na metade do século XX, Lygia é um dos nomes mais incontornáveis para contar essa história. Pois ela explorou os limites entre arte e vida num momento em que isso era um campo muito novo de experimentação. Ela chegou a um grau de radicalidade em sua carreira que, às vezes, estamos diante de algo muito sutil, muito precário e banal, mas aquilo para ela fazia parte de uma experiência artística”

Pollyana Quintella, curadora

O caminho até a pintura

A vida em Belo Horizonte durou pouco para Lygia. Aos 18 anos, ela deixou a casa dos pais para se casar com o engenheiro Aluízio Clark Ribeiro, mudando-se então para o Rio de Janeiro. Aos 20 anos, tornou-se mãe do primeiro filho. Foi entre os anos de 1947 e 1948 que iniciou seus estudos com Burle Marx (1909-1994) e Zélia Ferreira Salgado (1904-2009). Neste período, suas produções seguiam um formato mais tradicional, como pintura a óleo. Desde sempre, porém, cultivava um olhar peculiar para seu entorno, já indicando seu interesse futuro na arquitetura. Uma das principais influências para as mudanças que implementou em sua arte, desafiando as convenções do modernismo, foi a reflexão sobre o próprio período em que vivia.

“Lygia nos convida a pensar a arte como processo, com intenções de participação. Isso faz parte de uma ambição muito grande, que é a constatação de que a sociedade moderna está cada vez mais alienada. Por quê? Porque a industrialização acelerou o ritmo, houve um grande êxodo rural e as cidades se massificaram. Lygia confronta esse período de grande transformação, e o que tenta fazer com sua obra é ressensibilizar esse sujeito”, relata Pollyana.

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Lygia-Clark
(Acervo Pessoal/divulgação)

A exposição

Assim que o público entra na exposição na Pinacoteca, ele se depara com uma das obras mais famosas de Lygia: a série “Bichos”. Pela primeira vez em mais de uma década, as vinte peças originais da série estarão reunidas, criadas originalmente para interação com o público. Em uma das galerias, encontram-se as réplicas dos “Bichos”, permitindo ao visitante tocar e se relacionar, enquanto em outra, ao fundo, estão as peças originais reservadas apenas para contemplação, traindo a intenção da artista por um motivo legítimo: a preservação histórica das obras.

Ao redor das réplicas, encontram-se algumas de suas primeiras obras, marcando as transições de suas fases entre as décadas de 1930 e 1950.

O que torna o repertório de Lygia Clark tão sofisticado é compreender as conexões entre suas primeiras e últimas obras. Chama a atenção também o amadurecimento em relação à função da arte, não mais como algo desconectado da realidade, mas como um suporte à vida. Isso se evidencia em seus primeiros trabalhos, quando a pintura gradualmente se transforma em objeto tridimensional.

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“Quisemos mostrar como ela saiu de uma inspiração moderna na pintura e ingressou na arte contemporânea, testando os limites bidimensionais da pintura e a concepção de que a janela da pintura é um plano virtual, como uma janela, num jogo de ilusão. Ela reduz os elementos dessa construção, diminuindo o volume, a profundidade de campo, a pincelada, que seria um atributo muito pessoal. Passa a criar sulcos, baixos-relevos na pintura para demonstrar que aquilo não é uma janela, mas sim uma madeira, um plano”

Ana Maria Maia

Quebrando a moldura

Conforme radicaliza essa proposta, alcança um lampejo de compreensão sobre o que buscava. Surge então a ideia de “linha orgânica”, comprovando a conexão entre arte e vida. “Uma coisa que falta nessas obras é a moldura. A moldura é o limite, aquilo que contém a arte para dentro e a vida para fora. Ela quer mostrar que toda obra de arte é um organismo vivo. A obra tem que ter uma membrana de troca entre o dentro e o fora”, complementa Ana Maria.

Como isso se manifesta em seus trabalhos? Inicialmente, são os sulcos que ela começa a cavar na pintura. Eles percorrem a obra, fazem parte da composição, mas, em determinado momento, simplesmente escapam dela. Na tentativa de manter-se coerente com suas descobertas, o próximo passo a leva para o tridimensional, saindo do espaço virtual para o real; o espaço da experiência.

Trepante-Lygia-Clark
(Acervo Pessoal/divulgação)

Ana Maria Maia explica que esse é o período em que Lygia desapega de alguns conceitos clássicos da arte, como a ideia de autoria e o limite entre criador e espectador. Convida os visitantes a se relacionarem com as obras. A ideia de superação da arte como objeto de representação ou mimetização da realidade aproximou Lygia de outros artistas contestadores, como Hélio Oiticica, com quem publicou o Manifesto Neoconcreto em 1959, buscando resgatar a subjetividade em contraposição ao racionalismo extremo do concretismo.

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“Ela banca essa desmaterialização do orgânico e do efêmero, e isso já é significativo. Ao mesmo tempo, permite que vejamos uma trajetória contundente e rápida de mudança das práticas artísticas. De uma obra com autoria individual marcada a um estágio avançado dessa obra, em que fala de uma autoria coletiva. Ela convida qualquer pessoa a ser criadora dessa obra.”

Lygia-Clark
(Lygia-Clark/divulgação)

Outro passo nessas proposições foi retirar as obras de arte das galerias e museus, buscando aproximá-las das pessoas. Com esse movimento, questionava-se também a elitização da arte. “Ela usa um material ainda mais vulgar, que são os pisos emborrachados pretos, comuns em chão de fábrica. E aí ela chega nas obras moles, radicalizando ainda mais o experimento da arte em qualquer lugar. Ela tensiona esse questionamento sobre qual é o nível de blindagem que a arte precisa ter”, explica Ana Maria.

Arquitetura

Lygia foi da arte para a arquitetura não num impulso de se destacar daquilo que estava fazendo e pensando, mas ainda em um processo de entendimento sobre os diversos caminhos da arte. E, assim como na expressão artística, também na arquitetura, a vida vem primeiro. Ou seja, a edificação de um ambiente deveria atender às necessidades cotidianas do corpo e se relacionar com ele.

“Ela prioriza o olhar humano sobre a arquitetura e a experiência de cada indivíduo na formação dos espaços, ao contrário do que a arquitetura moderna que é: primeiro construímos o edifício e depois vemos como habitamos ele. Para ela, a forma de habitar são os movimentos e desejos do indivíduo que devem formar a construção”, diz Ana Maria.

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Além disso, ela pensa a arquitetura dentro dos conceitos que elaborou anteriormente, como a linha orgânica. A fresta da porta pode ser a linha orgânica, o ambiente que faz a troca entre o dentro e fora.

Casa-Lygia-Clark
(Acervo Pessoal/divulgação)

O corpo e a arte-terapia

Com o passar do tempo, Lygia não abriu mão dos formatos mais convencionais de arte, como a pintura (embora em menor quantidade) e a escultura, mas a materialização de seus temas a levou para a exploração do corpo, fosse através da performance ou, mais tarde, da arte-terapia. Abrangendo em suas construções as próprias crises.

“Lygia foi uma mulher que muito cedo foi psicanalisada, lidou com fases da vida pessoal, como maternidade, divórcio, em um momento em que era muito restrito o tipo de narrativa e de decisão que cabia a uma mulher. Ela escrevia muito sobre suas obras e era muito comum aparecer em seus textos uma crise íntima como um momento de revelação, que abria uma nova etapa na sua criação artística”, explica Ana Maria.

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Para ela, a arte ultrapassava o propósito expressivo e se tornava uma ferramenta para o bem-estar e a cura. Na exposição, esta fase está presente nas obras “Memórias do corpo”, nas quais ela cria objetos para que as pessoas possam se relacionar com eles, com a intenção de despertar sensações, lidar com traumas e memórias. No fim de sua vida, ela atendia pacientes em sua casa, utilizando os chamados “objetos relacionais”.

“Ela termina a vida dedicando grande parte do tempo a atendimentos individuais, em seu apartamento em Copacabana, com esses objetos artísticos, os objetos relacionais, para curar e despertar as memórias do corpo. Para trazer liberdade e criatividade para a vida das pessoas. E ela não nega a arte fazendo isso, ela diz que esse é o fazer de uma artista”, conta Ana Maria.

Lygia Clark: Projeto para um planeta

De 02.03 a 04.08.2024
Pinacoteca Luz (7 salas)
De quarta a segunda, das 10h às 18h (entrada até 17h)

Ingressos gratuitos aos sábados. Nos outros dias R$ 30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia)

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